O cinema e a Revolução: tensões e diálogos na construção da identidade do intelectual cubano

Leonam Quitéria Gomes Monteiro*

Resumo: Este trabalho visa analisar as construções identitárias dos intelectuais no cinema cubano. Com a institucionalização do Socialismo, os artistas foram cobrados a produzirem uma arte atrelada aos novos valores revolucionários.  Pretende-se discutir os filmes El Final (1964) e Desarraigo (1965), de Fausto Canel e Memórias do Subdesenvolvimento (1968), de Tomás Gutiérrez Alea. Esses filmes produziram uma ruptura com o papel que o governo imputou ao cinema, ou seja, o de ser um cinema de propaganda. Os diretores propuseram usos à linguagem cinematográfica e construíram discursos que apresentavam dúvidas e críticas aos processos revolucionários. O cinema ao mesmo tempo em que serviu como uma ferramenta das demandas governamentais, também se converteu em uma arena de reflexões e discursos políticos.

Palavras-chave: Cinema cubano. Intelectuais. Identidade. ICAIC

Abstract: This work aims to analyze the identity constructions of intellectuals in Cuban cinema. With the institutionalization of Socialism, artists were required to produce an art linked to the new revolutionary values. The aim is to discuss the films El Final (1964) and Desarraigo (1965) by Fausto Canel and Memories of Underdevelopment (1968) by Tomás Gutiérrez Alea. These films produced a break with the role that the government had assigned to cinema, namely that of being a propaganda cinema. The directors proposed uses for cinematographic language and constructed discourses that presented doubts and criticisms of the revolutionary processes. While cinema served as a tool for government demands, it also became an arena for political reflection and discourse.

Keywords: cuban cinema; intellectuals; identity; icaic


À guisa de introdução

A relação entre o campo cultural cubano e o campo político foi permeada por uma tensão constante. Com o triunfo da Revolução Cubana, ocorrida em 1959, um dos pontos de maior relevância foi a importância dada ao campo artístico na construção de uma imagem, de uma identidade para os cubanos. Esse ideal revolucionário foi o guia central para a criação do ICAIC – Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos, em 24 de março de 1959, apenas três meses após a revolução. O papel da arte junto à política foi importante, pois ela ocupou um lugar ímpar no meio cultural. (AVELLAR, 1995, p. 269).

Segundo Mariana Martins Villaça, a política cultural oficial do governo foi reelabora no interior do ICAIC, ou seja, existia uma lógica própria de assimilação entre os desejos do governo, as inquietações e os projetos dos cineastas e a próprio instituto. (VILLAÇA, 2010, p. 24). Nesse sentido, apontamos que as assimilações produziram filmes distintos, dentro de um cenário complexo e marcado pela disputa de projetos. Com a Revolução Cubana, a política cultural do governo atribuía às artes o papel de elaborar e difundir a ideia de um “novo homem cubano”.

O cinema, portanto, teve um lugar de destaque dentro das políticas do governo. A lei nº 169, que criou o ICAIC, também estabeleceu as bases para o que seriam considerados os deveres sociais do cinema. Fica posto que, “o cinema é, em virtude de suas características, um instrumento de opinião e formação da consciência individual e coletiva (…).” (GARCIA BORRERO, 2015). Essa característica de formador de consciência é o ponto que coloca o cinema em lugar de destaque.

Em 1961, a relação entre intelectuais e o governo entrou em crise devido à censura imposta ao curta-metragem chamado P.M. Ele foi o catalisador para que o governo revolucionário repensasse qual deveria ser o papel do intelectual e de uma arte revolucionária dentro de Cuba. Esse caso é um disparador para as tensões que se estabeleceriam durante toda a década dos anos 60. Nesse sentido, este trabalho visa analisar as construções identitárias dos intelectuais no pós-Revolução Cubana. Com a institucionalização do Socialismo e a crise no meio cultural por conta de P.M, os artistas e intelectuais foram cobrados a produzirem uma arte atrelada aos novos valores sociais.

Amparamo-nos nas formulações propostas por Stuart Hall, ao percebermos que as identidades se constroem a partir das necessidades dos sujeitos e dos contextos sócio-históricos. Uma das grandes contribuições do sociólogo está no fato de atribuir às identidades uma constante capacidade de mudanças, sendo capaz de transformarem-se. Nesse sentido, as identidades não são fixas e, sim, mutáveis e fragmentadas. (HALL, 2006, p. 12). Se as identidades detêm a capacidade de movimento, logo, elas não são definidas biologicamente, mas historicamente. Conclui-se, que os indivíduos e os grupos sociais têm a capacidade de atribuir a si mesmos diferentes identidades em diferentes momentos. (HALL, 2006, p. 13)

Pretende-se discutir os filmes El Final (1964) e Desarraigo (1965), de Fausto Canel e Memórias do Subdesenvolvimento (1968), de Tomás Gutiérrez Alea. Esses filmes produziram uma ruptura com o papel que o governo imputou ao cinema, ou seja, o de ser um cinema de propaganda. Os diretores propuseram usos à linguagem cinematográfica e construíram discursos que apresentavam dúvidas e críticas aos processos revolucionários. O cinema ao mesmo tempo em que serviu como uma ferramenta das demandas governamentais, também se converteu em uma arena de reflexões e discursos políticos. Em Cuba, a política é o “intertexto inevitável e sempre presente na estética.” (CHANAN, 2004, p. 12).

“Este diálogo permite que a tela do cinema pudesse se tornar mais do que qualquer propaganda ou um espaço de diversão, mas preservar um crucial discurso político, um espaço que envolve grandes setores da população no debate sobre o significado e qualidade de suas vidas.” (CHANAN, 2004, p. 18).

Nesse sentido, uma vez inseridos em um contexto de grandes transformações político-sociais, acompanhadas da construção do Socialismo, os filmes não apenas retrataram esse momento, mas questionaram os rumos da recente revolução.

A (des)construção da identidade do intelectual: diálogos entre narrativas cinematográficas

El final, de Fausto Canel, aborda a relação de um casal de classe média e a necessidade de separação de ambos, em virtude da revolução, e como as mudanças políticas e sociais intervêm nas relações amorosas. As protagonistas Pedro e Ana são um casal na vida real e trabalham juntos em um filme, em suma, são artistas. A sequência inicial se constrói com um movimento da câmera que registra livros, jornais, revistas, cartazes de exposições, enquanto o casal dialoga e Ana diz que ama Pedro, que permanecerá em Cuba.  A ambientação das personagens constrói uma parte de suas personalidades e suas identidades. Os objetos que compõe esse ambiente são ligados ao campo da cultura e da intelectualidade. O drama da narrativa se estabelece quando o governo de Fidel Castro começa a adensar a política de socialização da ilha e a nacionalização das empresas norte-americanas.

Após a sequência inicial, o casal resolve sair para tomar um café. Enquanto passeiam pela rua, a câmera enquadra a capa de um jornal que nos informa o acontecimento do dia: o discurso de Fidel Castro. Essa contextualização é importante por dois motivos: 1) para estabelecer os sentimentos políticos das personagens e do país, tendo em vista as transformações econômico-sociais; 2) o momento central da separação do casal ocorre durante o discurso de Fidel Castro.

Imagem 1 – Capa de jornal com Fidel Castro

Ana e Pedro são convidados para um encontro na casa de amigos, que também são figuras intelectuais, principalmente porque são interpretados por pessoas que exercem essa função no mundo real, a saber, os diretores de cinema Gutiérrez Alea, Eduardo Manet e Sara Gómez. A casa está cheia de pessoas, mas o casal acaba se dirigindo para um dos quartos. Ana e Pedro discutem, pois ela conta que decidiu partir de Cuba. Pedro diz que a ama, mas não pode deixar seu país e que ela está cometendo um erro.

Imagem 2 – Ana cota sobre sua partida de Cuba – (El final)

A personagem Ana é a mais afetada, ao ponto de não saber mais o que ela quer, quem ela é. Literalmente, a personagem vive um momento de desconexão com a realidade que está se construindo e se delineando. Ela já não se sente mais parte do novo mundo. Há uma incapacidade de Ana em se ajustar ao novo momento político, econômico, social e cultural de Cuba. Ela se sente uma estranha em um lugar não mais familiar.

“Em toda aquela efervescência idealista, Ana poderia parecer uma personagem errática e frívola. Mas é sua indecisão, seu ressentimento, que a torna muito mais lúcida e terrena do que o resto. A intelectualidade reunida na mansão celebra e especula sobre os planos revolucionários com tanta engenhosidade que até as respostas dadas ao questionário por Michelle, a jornalista francesa, parecem slogans. O debate sobre o destino do poder em Cuba é feito em festa, não há solidez, muito menos conflito.” (APARICIO; BISQUET, 2020)

Ao sair da casa de seus amigos, o casal passa de carro em frente ao estádio de futebol, onde Fidel Castro realizará seu discurso. Pedro decide sair do carro, se despede de Ana com apenas um beijo, segue com a multidão, e logo o perdemos de vista. Há a construção de um paralelo entre as imagens. Enquanto Pedro se mistura no meio das pessoas, representando a coletividade, em oposição, Ana segue sozinha no carro, em prol de seguir sua própria vontade. Dentro do carro, Ana chora enquanto ouvimos no rádio o discurso de Fidel Castro. Ela segue por um túnel, uma metáfora que faz referência ao seu caminho de partida.

Imagem 3 – Pedro e Ana se despedem (El final)

Imagem 4 – Pedro no meio da multidão (El Final)

Imagen 5. Ana partindo de Cuba (El final)

Desarraigo, primeiro longa-metragem de Canel, foi realizado logo após El Final. Grandes partes dos temas que apareceram na narrativa de seu filme anterior retornam em sua nova produção. O filme conta a história de um engenheiro argentino chamado Mario, que chega a Cuba com a intenção de contribuir para a construção de uma nova sociedade. As dificuldades cotidianas aguçam suas contradições e frustram a relação de amor que começara com Marta, uma arquiteta cubana e sua colega de trabalho. Novamente, estamos diante de um casal cujo relacionamento é confrontado pelas questões que envolvem o processo de consolidação da revolução, assim como aconteceu com Ana e Pedro em El Final.

A questão econômica da ilha é um tema importante dentro da narrativa. Mesmo após o embargo econômico dos EUA, a indústria nacional ainda conseguiu se manter ativa. Em seu ambiente de trabalho, juntamente com Mario, a engenheira questiona: “Em nossa revolução temos que contar mais com o que falta, do que com o que temos.” Ela ainda cita uma série de produtos que faltam na indústria, inclusive a própria mão de obra trabalhadora. Uma voz off nos apresenta o cotidiano da planta fabril, acompanhada por imagens e os processos químicos. Faltam peças e materiais para os projetos da indústria, que não podem ser fabricadas na ilha. O bloqueio econômico imposto pelos EUA é um impasse na vida cotidiana. Os desdobramentos desse bloqueio e da nacionalização das empresas por parte do governo cubano é um tema que Desarraigo compartilha com El Final, sendo um critério importante para que Ana decida sair da ilha e se tornar atriz em Nova Iorque.

Em outra sequência, Marta se dirige até um departamento da fábrica com Mario, pois precisa de uma documentação referente à construção de casas pela indústria. O novo encarregado do local não a conhece. Ele a questiona. Encarregado: “perdoe-me, mas essa companheira trabalha aqui?” / Marta: “por que a pergunta?”/ Encarregado: “não pode ter mulheres aqui […]. Você precisa vir muito aqui, companheira?” Marta responde: “sempre.”. O encarregado dirige-se até Mario e diz: “olha, companheiro, se a companheira precisar vir aqui, mudo a oficina, porque por aqui mulheres…”. Ele faz sinal de negação com o dedo indicador. Corte.

Imagem 6 – Encarregado questiona a presença de Marta. (Desarraigo)

O plano seguinte apresenta um conjunto de mulheres dançando em um palco com trajes curtos, uma espécie de biquíni com pedras, saltos altos e plumas nas cabeças. Ele é revelador das contradições do cotidiano. De um lado, a revolução rompeu com os valores imperialistas, mas segue condenando as mulheres sem que tenham o devido respeito e poder de decisão. Por outro lado, a revolução aceita que as mulheres sejam relegadas a espaços subalternos, mesmo que o Imagem 3.jpgescritório do encarregado seja cheio de foto de mulheres na parede.

Imagem 7 – Dançarinas em um bar (Desarraigo)

Após a apresentação das dançarinas, a câmera segue até uma mesa onde Marta e Mario estão sentados no bar. Os dois começam um diálogo sobre o trabalho e suas personalidades. Em um dado momento, Marta posiciona o copo cheio de bebida na frente de um dos seus olhos, como se estivesse olhando para Mario com uma lupa. Ele a indaga sobre estar lhe olhando com uma máscara. Ela responde que ele não tem máscara. Ele diz que ela é generosa ou demasiadamente confiante.

Marta elenca uma série de dualidades de sua identidade como boa e má, generosa e tonta, confiante e egoísta. Como Mario diz que não se conhece bem, Marta o descreve conforme o enxerga. Dessa vez, a câmera se torna a própria visão subjetiva da personagem, e passamos a mirar o rosto de Mario através do copo com bebida. Ela segue sua descrição sobre ele: “Tem de estar seguro de si mesmo, havia errado muito (…). Veio ver o que se passa com Cuba (….). Crê na Revolução, mas não faz muito por ela. Crê que no fundo as coisas são mais fáceis do que são (…).” (grifo nosso)

Imagem 8 – Marta olhando Mario (Desarraigo)

Na metade do filme, o casal inicia uma conversa cujo tema central é a identidade de ambos. Durante o diálogo, Marta diz que só há cinco anos se reconheceu como latino-americana, enquanto Mario, por sua vez, diz ter feito essa descoberta em Paris. Ao ouvir a confissão, ela faz uma afirmação: “um dia virastes para o espelho e te encontrastes subdesenvolvido” (grifo nosso). Mario responde: “não. Não foi do dia para a noite, mas, certamente um dia.” Ele retoma um acontecimento que marcou sua vida, em outubro de 1961, ao se deparar com uma situação em Paris: 200 cadáveres flutuando no rio Sena e todos eram de argelinos. Ele diz: “compreendi que eu também pertencia a outro mundo.” (grifo nosso). A situação de desconexão, de contradição e de crise de identidade é posta pelos dois personagens. Ela acredita que ele “veio ver o que se passa em Cuba. Crê na Revolução, mas não faz muito por ela”, anteriormentedito pela personagem. (grifo nosso)

Mario convida Marta para ir com ele a Paris. Ela tenta desconversar, mas admite que isso não é possível, mesmo o convite sendo uma “tentação”. Apesar de se amarem, para Marta, os deveres perante a revolução falam mais alto. Ele diz que, na Europa, ela poderia trabalhar com ele. Marta recusa, dizendo que não seria a mesma coisa, afirmando que a questão vai além de estar em outro país. Ela declara que nada pode impedi-la de se realizar e de ser ela mesma.

O casal acorda pela manhã. Marta está na cozinha e iniciam um diálogo. Mario pergunta onde estão os pais dela, ela responde que estão em Nova Iorque. Marta questiona se ele não vai voltar mais para a Argentina. Ele diz: “Não tenho raízes. Dizem que os desarraigados são os aristocratas de nosso tempo.” Marta o questiona, ele então reformula afirmando que “são os aristocratas que são os únicos desarraigados do seu tempo.” Essa afirmação faz referência direta ao não reconhecimento do intelectual burguês em relação ao novo mundo da revolução. Não reconhece mais o seu espaço, não tem mais raízes, assim com as personagens de El Final e de Memórias do Subdesenvolvimento, como discutiremos em seguida. Marta ainda pergunta: “é importante ter raiz?” Mario responde: “você não sabe por que as têm.”  Ela segue sua indagação: “te interessava vir a Cuba ou foi apenas curiosidade?”. Mario diz: “no fundo, eu vim por curiosidade…o trópico, a revolução…porque queria saber o que se passa realmente com essa revolução. Colocar-me à prova.”  (grifo nosso)

Após todos os diálogos e reflexões sobre suas identidades e raízes, Mario insiste na ideia de ir embora para Paris, em vez de retornar à Argentina, seu país de origem. Marta aceita sua decisão, mas afirma que ele não compreendeu nada sobre o que era importante para ela, incluindo a revolução. Marta o chama de “fraude”, permanecendo desolada. Mario prefere partir do país e abandonar seu amor por Marta. As conexões temáticas entre os filmes de Fausto Canel residem, principalmente, no descontentamento que as personagens têm com os rumos da revolução, que por sua vez, impactam em como percebem as mudanças do mundo em que viviam. O sentimento de deslocamento e perda da identidade surge ao perceberem que a sociedade mudou, enquanto eles permanecem os mesmos. Eles não se reconhecem nas transformações ao seu redor.

Memórias do Subdesenvolvimento é um filme que se passa em Havana, no ano de 1961, e inicia-se com as despedidas de diversas pessoas de famílias diferentes que estão abandonando Cuba e partindo em direção a Miami. Sérgio, a personagem principal, se despede de seus pais. Sua esposa, contudo, prefere partir sem se despedir dele. Sergio decide permanecer na ilha. O objetivo dele é entender quais os rumos que a Revolução Cubana vai tomar no país. Aqui, há uma conexão entre Sergio e Mario, pois ambos decidem permanecer/estar na ilha para acompanhar os rumos da revolução.

Já em sua casa, após regressar do aeroporto, Sergio olha para a cidade de Havana através do seu telescópio — uma metáfora que simboliza seu distanciamento da sociedade.  Ao contemplar a capital, diz: “aqui continua tudo na mesma”. Ainda fazendo referência ao que ele não enxergava ser a Revolução.

Imagem 9 – Sergio com seu binóculo, na varanda de seu apartamento (Desarraigo)

A partir da utilização de elementos combinados da linguagem cinematográfica, o filme segue com o olhar subjetivo de Sergio e nos mostra as ruas de Havana e seus habitantes, até a personagem comece a questionar a nova realidade. A câmera focaliza diversos rostos de cubanos, aparentemente, numa classe social e econômica abaixo, Sergio se questiona: “que sentido a vida tem para eles? E para mim? Que sentido tem para mim? Não sou como eles!” Close no rosto de Sergio. Corta para próxima cena.

Imagem 10 – Sergio pelas ruas de Havana (Desarraigo)

“Memórias do Subdesenvolvimento é, então, a história comovente de quem paga de maneira adversa, as consequências de uma renúncia voluntária ao espaço (e ao tempo) que há alimentá-lo. Embora as cenas iniciais, aquelas em que se relata a partida dos familiares de Sérgio, se tornem exemplares pela economia de recursos que se exibe (não há palavras, apenas gestos) e ainda assim a eficácia do clima, é a própria atitude do protagonista demofóbico, aquele que de maneira mais intensa revela as severas cotas do isolamento que o ostracismo significa, uma tragédia que Alea se encarrega de enfatizar (às vezes, involuntariamente) com recursos como os do telescópio, certamente chave para ampliar a distância dolorosa que o protagonista esconde da realidade, o que é igual, da vida. Tematicamente, a questão não é virgem dentro da cinematografia cubana do período, pois o intelectual diante de uma realidade que lhe é diferente e por vezes incompatível, já estava presente (…) em Desarraigo, de Fausto Canel.” (GARCIA BORRETO, 2000, p. 151)

Juntamente com Sergio, a Revolução — ou melhor, os rumos tomados após seu triunfo — é uma das protagonistas centrais do filme. Mesmo sem ser mencionada diretamente, sua presença dela se faz sentir em cada tomada de decisão ou pensamento subjetivo de Sergio. Em uma carta escrita em 1963, Alea diz:  

“Eu não gostaria de me preocupar em mostrar a Revolução. Estou certo de que, embora tentemos evitá-la, ela estará presente em alguma medida (da paisagem à maneira como os personagens reagem, tudo está impregnado de Revolução e, mesmo que não seja expressa diretamente, seu espírito passará por qualquer história que seja feita hoje em Cuba, se for feito com sensibilidade e um mínimo de inteligência). Quero insistir nisso, porque cheguei à conclusão de que, na realidade, devemos tentar evitar, na medida do possível, a interferência (inevitável) desse elemento. Se eu reajo assim, é porque estou saturado, como você pode ver por si mesmo. Mas essa reação também é uma consequência da Revolução e uma maneira de fazer sentir sua presença.” (IBARRA, 2007, p. 104-105).

Alea atesta o impacto que a Revolução tem na vida de toda a sociedade. Sergio não compreende sua importância, precisamente porque não se reconhece como parte da própria transformação. A partir do ponto de vista da personagem principal, observamos o afastamento que ela se coloca em relação à nova realidade. Seu mundo já não mais existe e, ao mesmo tempo, ela não se reconhece no mundo novo. “Sendo a realidade incompreensível e absurda, todo o resto perdeu o sentido.” (DÖPPENSCHMITT, 2012, p. 95).

Segundo Döppenschmitt, Alea toma a figura do escritor como possibilidade de analisar o caráter burguês do intelectual. É o ponto de vista subjetivo de Sergio que é posto em questão. (DÖPPENSCHMITT, 2012, p. 114). Sergio é um crítico, critica sua própria classe, mas não é capaz de compreender que também faz parte dela. (DÖPPENSCHMITT, 2012, p. 109). “Como Sérgio não consegue se encaixar na nova configuração que a realidade lhe impõe, nada faz sentido e tudo o que lhe resta são suas memórias.” (DÖPPENSCHMITT, 2012, p. 268).

Durante umas das muitas caminhas de Sergio por Havana, ele conhece Elena, que viria ser o seu caso romântico ao longo da narrativa. O encontro de Sergio com Elena se dá justamente no ICAIC, onde ela está parada na frente de um prédio. Sergio a fixa no olhar e pergunta se ela quer alguma ajuda. Elena o ignora. Sergio continua fitando-a. A câmera subjetiva nos coloca no olhar de Sergio para Elena.

Imagem 11 – Perfil de Elena (Desarraigo)

Em outro momento, o casal está na casa de Sergio. Elena é a personagem que faz o contraponto aos pensamentos de Sergio, estando completamente em oposição a ele. Ao ver uma foto dos pais dele, Elena pergunta o por que ele não foi embora. Ela pergunta: “você é revolucionário? ”Sergio não responde e pergunta o que ela acredita ser a resposta. Ela diz: “eu creio que você não é revolucionário e nem contrarrevolucionário. Nada. Você não é nada.” Sergio fica pensativo. (grifo nosso)

Em outro encontro com Elena no apartamento, Sergio olha para ela e começa e refletir sobre a condição da jovem:

“uma das coisas que mais me desconcerta é que as pessoas são incapazes de sustentar um sentimento, uma ideia sem dispersão. Elena mostrou-se completamente inconsequente. (…) Não relaciona as coisas. Esse é um dos sinais do subdesenvolvimento: incapacidade de relacionar as coisas, para acumular experiência e se desenvolver. (….) O cubano gasta seu talento se adaptando ao momento. As pessoas não são consistentes. E sempre precisam de alguém que pense por elas.”

As reflexões de Sergio são acompanhadas por fotogramas que mostram Elena.

Na visão de Sergio, Elena é o exemplo do cubano subdesenvolvido. Sergio reconhece que Elena e ele não têm relação, ambos compreendem o mundo de formas diferentes. Para ele, Elena só o faz recordar do subdesenvolvimento. Se um dos sinais da condição de subdesenvolvido é a incapacidade de relacionar as coisas para acumular experiência, logo, Sergio faz parte da própria condição que tenta analisar. Ele é incapaz de perceber as transformações trazidas pela Revolução.

Em outra parte do filme, Pablo, o amigo de Sergio, está de partida da ilha e pergunta ao intelectual quando ele vai para os Estados Unidos. Sergio diz que já conhece o país e afirma:

“o que vai ocorrer aqui é um mistério para mim.” Pablo questiona: “não é mistério, Sergio. Todo mundo sabe o que vai acontecer.” Sergio afirma: “pode ser. mas, talvez, seja interessante.” Durante a despedida de Pablo, Sergio reflete sobre si e diz: “eu era como ele antes? É possível. Mesmo se a Revolução me destruir, essa é a minha vingança contra a estúpida burguesia cubana. E cretinos como Pablo. Sei que Pablo não é Pablo. E, sim, minha própria vida. Tudo o que não quero ser. É bom vê-los partir. É como tirá-los de dentro de mim. Mantenho a lucidez. Uma lucidez desagradável, um vazio. Sei o que é. Não posso evitar. Ele, Laura, todos…”

Elena e Pablo são reflexos de Sergio. Ele carrega consigo os traços do subdesenvolvimento de sua amante quanto o caráter burguês do amigo. O rechaço de ambas as condições é a negação de sua própria identidade. Sergio enxerga, em ambos, sua própria imagem.

Em um dos principais planos da união acertada entre linguagem cinematográfica e construção narrativa, Sergio caminha pela cidade em direção a câmera. Gradualmente, a imagem vai se desfocando até que ele desaparece por completo. Sua figura some, assim como sua identidade. Durante esse momento Sergio argumenta:

“Não entendo nada. (…) Como sair do subdesenvolvimento? Cada dia acho mais difícil. Marca tudo. O que você faz aqui, Sergio? O que significa tudo isto? Você não tem nada que ver com essa gente. Está só. No subdesenvolvimento não há continuidade. Tudo é esquecido. As pessoas não são consequentes. Você se lembra de muitas coisas. Recorda demais. Onde está tua gente? Teu trabalho? Tua mulher? Você não é nada. Está morto. Agora começa Sergio, tua destruição final.”

A narração em voz off representa não a morte física da personagem, mas sim dos valores que ele representa. Assim como sua imagem se desmancha e some em tela, a narrativa sugere que o mesmo deveria acontecer com seus valores do passado, que não condizem mais com o momento atual da Revolução Cubana. O que está sendo indicado é a construção de uma nova identidade para o intelectual.

Imagem 12 – Parte da sequência da desintegração de Sergio (Desarraigo)

Conclusão

O diálogo entre os três filmes apresentados nos permite concluir que há uma crise de identidade do intelectual. De diferentes formas, as personagens são transpassadas pelas transformações acarretadas pelas Revolução Cubana. Os discursos cinematográficos apresentam possibilidades de como esses intelectuais/diretores lidaram com as questões que estavam atreladas ao papel e, em maior grau, como foram afetados em seus posicionamentos críticos em relação à sociedade. Os filmes propõem a discussão sobre o desenraizamento vivido por diversas pessoas, em relação as suas identidades perdidas e reconfiguradas.

A condição de intelectual desenraizado consistiu na perda de seu eu-passado, em contraposição a não construção de seu eu-presente. Essa condição foi vivida por Mario, Ana e Sergio no plano do discurso cinematográfico. Essas imagens estavam em diálogo direto com o momento histórico que a ilha vivia. Segundo Said, o exílio converte o intelectual em um “(…) pária permanente, sempre fora de casa, sempre em desacordo com o seu entorno, inconsolável com respeito ao passado e amargo com respeito ao presente e ao futuro.” (SAID, 1996, p. 59). Há um desacordo entre os sentimentos e a cobrança de uma participação na construção da sociedade, que demandava um posicionamento perante as situações em defesa dos valores revolucionários, conforme os interesses do governo. “Nesse sentido metafísico, o exílio para o intelectual é a inquietação, o movimento, um estado de instabilidade permanente que desestabiliza os outros. Você parece incapaz de voltar a uma determinada condição anterior e talvez mais estável para se sentir em casa.” (SAID, 1996, p. 63-64).

As personagens apresentadas – Ana, Mario e Sergio – representam, portanto, a tensão estabelecida entre o campo cultural, com as discussões sobre as transformações identitárias, e o campo político, com desejo de elaborar a imagem do “homem novo cubano”, uma identidade homogênea e estática. Essa questão esbarra com as demandas dos próprios intelectuais em crise com suas próprias identidades. A partida física de Ana e Mario dialoga diretamente com a permanência desenraizada de Sergio, ambos tentando lidar com as questões políticas que impactaram diretamente a sua relação com a nova sociedade. Uma vez desconectados das novas demandas que a revolução exigia, as personagens entraram em crise, em desacordo com o que se esperava do papel do intelectual. Isso acontece à medida que o intelectual percebe que vive entre dois mundos: como a sociedade era e como a sociedade é. Seu mundo antigo já não existe mais e, ao mesmo tempo, ele ainda não se enxerga conectado com o mundo novo. Devido a essa desconexão, o intelectual adquire uma “segunda personalidade.” (TODOROV, 1999, p, 20). “Uma das duas vidas deveria eliminar a outra.” (TODOROV, 1999, p, 22).

Posto isso, conclui-se que as identidades dos intelectuais foram reformuladas e refeitas, segundo os discursos apresentados pelos diretores. Entre o desejo de permanecer na ilha e a vontade de emigrar, estabeleceram-se tensões no meio cultural entre os artistas e o governo cubano.

Referências Bibliográficas

APARICIO, José Luis; BISQUET, Katherine. Los azules espectrales: ‘Elena’ y ‘El final’. México, 2020. Disponível em: <https://rialta.org/los-azules-espectrales-elena-y-elfinal/> Acesso em> 20 jan. 2022. AVELLAR, José Carlos. A Ponte Clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, Garcia Espinosa, Sanjinés e Alea – Teorias de cinema na América Latina. São Paulo: Editora34, 1995.CHANAN, Michel. Cuban Cinema. Minessota: University of Minnesota Press, 2004.DÖPPENSCHMITT, Elen. Políticas da voz em Memórias do Subdesenvolvimento. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2012.

ARCIA BORRERO, Juan Antonio. Guía crítica del cine cubano de ficción. Havana: Editorial Arte y Literatura, 2000.

GARCIA BORRERO, Juan Antonio. Ley no. 169 de creación del ICAIC. Cuba, 2015. Disponível em: https://cinecubanolapupilainsomne.wordpress.com/2008/08/15/ley-no-169-de-creacion-del-icaic/ . Acesso em: 20 jan. 2022.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de janeiro: DP&A, 2006.

IBARRA, Mirtha (org). Tomás Gutiérrez-Alea: Volver sobre mis passos. Madrid: Ediciones Autor, 2007.

SAID, Edward W. Representaciones del intelectual. Barcelo: Paidós, 1996.

TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Record, 1999.

VILLAÇA, Mariana Martins. Cinema Cubano: revolução e política cultural. São Paulo: Alameda, 2010.

Nota

 * Leonam Quitéria Gomes Monteiro es Doutorando em História, PPGH-UERJ. Bolsista FAPERJ. Este artigo é um desdobramento da dissertação de mestrado A ilha em Revolução: uma análise da construção do intelectual em Memórias do Subdesenvolvimento (1961-1968). Rio de Janeiro, PPHR-UFRRJ, orientada pelo prof. Dr. Luis Edmundo de Sousa Moraes.

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