
Paulo Geovane Sousa Almeida*
Resumo
O presente artigo analisou as lembranças afetivas através da rememoração na obra Vermelho Amargo. Para fundamentar nossa pesquisa buscamos suporte teórico em Halbwachs (2003), Le Goff (1990), Pollak (1992), Benjamin (1993), Bourdieu (2002), Navas e Ramos (2020), dentre outros. A obra em questão, pode ser considerada literatura Juvenil, apesar de, trazer em seu contexto linguístico, uma escrita complexa. O texto nos mostra uma narrativa fragmentada, no qual os parágrafos são autônomos, capazes de viabilizar ao leitor uma verdadeira compreensão, pois não possuem início, meio e fim. A memória é o principal tema da obra, recurso utilizado pelo menino (narrador), onde emprega algumas simbologias, como: o tomate, para representar a dor da saudade de perder sua mãe. Chegamos a conclusão nessa pesquisa, que o tomate como símbolo figurativo, não só mostra ao leitor sentimentos negativos, como pelas vezes que foi desempenhado pela madrasta, mas sentimentos bons, mostrado quando a mãe do menino, ainda viva, cozinhava e cortava-o para as refeições. Observamos ainda, que essa saudade tem cor e gosto, o Vermelho Amargo.
Palavras-chaves: Literatura brasileira; Memória; Literatura Juvenil, Vermelho Amargo.
Abstract
This article analyzed emotional memories through recollection in the work Vermelho Amargo. To support our research, we relied on theoretical foundations from Halbwachs (2003), Le Goff (1990), Pollak (1992), Benjamin (1993), Bourdieu (2002), Navas and Ramos (2020), among others. The work in question can be considered young adult literature, despite presenting a complex writing style within its inguistic context. The text reveals a fragmented narrative, in which the paragraphs are utonomous, allowing the reader a true understanding, as they do not follow a beginning, middle, and end structure. Memory is the main theme of the work, a
resource employed by the boy (narrator), who uses certain symbols, such as the tomato, to represent the painful longing for his lost mother. Our research concludes that the tomato, as a figurative symbol, conveys not only negative feelings, such as those evoked by the stepmother, but also positive emotions, shown when the boy’s mother, still alive, cooked and sliced the tomato for meals. We also observed that this longing has a color and a taste: the Bitter Red.
Keywords: Brazilian Literature; Memory; Young Adult Literature; Vermelho Amargo.
Notas introdutórias
Dói. Dói muito. Dói pelo corpo inteiro. Principia nas unhas, passa pelos cabelos, contagia os ossos, penaliza a memória e se estende pela altura da pele. Nada fica sem dor. Também os olhos, que só armazenam as imagens do que já fora, doem. A dor vem de afastadas distâncias, sepultados tempos, inconvenientes lugares, inseguros futuros. Não se chora pelo amanhã. Só se salga a carne morta.
O estudo tem por objetivo analisar as lembranças afetivas através da rememoração na obra Vermelho Amargo. O nosso corpus de pesquisa é o romance mencionado anteriormente, do escritor Bartolomeu Campos de Queirós.

Imagen Fuente: Foto Matheus Dias en Luis Guilherme Barbosa «O tomate da discordia» en rascunho.com.br
Bartolomeu nasceu em 1944, na cidade de Pará de Minas, viveu a infância em Papagaio (MG). Estudioso de filosofia e da estética, utilizou a arte como parte integrante do processo educacional. Colecionou muitas medalhas e prêmios como por exemplo: Grande Prêmio da Crítica em Literatura Infantil/Juvenil pela apca, Jabuti, FNLIJ e Academia Brasileira de Letras. Vermelho Amargo deu a ele postumamente o Prêmio São Paulo de Literatura de Melhor Livro do Ano. Começou a escrever quando estava exilado na França, em 1960, para aplacar a solidão. Seus livros quando não são poesias são prosas poéticas -, o “eu” aparece para o mundo, ora amargo ora esperançoso. O romance Vermelho Amargo é seu último livro publicado em vida e se insere dentro da sua obra sendo pertencente ao gênero autobiográfico, ao lado de obras aguçadas pela ternura e afeto de ser criança em Cavaleiros das Sete Luas, De Não e Não, Flora, Mais com mais dá menos e outras. Ele faleceu em 2012 na cidade de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais.
O texto em tela apresenta a figura de um narrador personagem, que ao narrar sua história conta a dor de um menino que perde a mãe e tem por obrigação conviver com o pai, a madrasta e os cinco irmãos. Com um jeito delicado e poético de contar sua história, a criança descreve com suas percepções os sentimentos dos demais personagens.
Reconhecer uma obra como literatura juvenil torna-se um assunto bastante complexo. Se até poucos séculos nossa sociedade não tinha se quer o conceito de ser criança, imagina um conceito do que era ser adolescente. Para a sociedade todos eram vistos da mesma forma. Então, falar de literatura juvenil é como afirma Navas e Ramos (2020) que essa ficção mostra um conceito recente e tardio, porque a adolescência não era considerada uma fase vital.
Nesse sentido, podemos entender Vermelho Amargo como literatura juvenil, porque apesar de trazer uma escrita de complexa definição, trata-se também de uma prosa poética com bastante recurso linguístico, é de fato um desafio para o leitor jovem, assim como em Memórias Póstumas de Brás Cubas que pode ser um desafio para o leitor adulto. Não basta imaginar, que um leitor jovem não terá a capacidade para realizar leituras um pouco mais difíceis. Para Navas e Ramos (2020) a literatura juvenil revela traços distintivos e que devemos refletir sobre o panorama contemporâneo da produção literária juvenil.
Notas teóricas
O romance Vermelho Amargo trata-se de um texto memorialístico, pois a sua narrativa retrata as memórias de um menino que perdeu a mãe, onde teve de conviver com seu pai, sua madrasta e seus irmãos. Durante toda a vida, o menino teve que recorrer a lembranças do seu passado, rememorando momentos com sua mãe e fazendo comparativos com seu atual momento. A figura do tomate dentro da obra é usando como uma simbologia para representar a figura da mãe e toda sua família, seja por um aspecto positivo ou negativo. O narrador consegue através desse símbolo construir significações para a história.
Podemos definir a memória, como a capacidade que o ser humano tem de adquirir, resgatar ou mesmo armazenar informações. Essa memória pode ser individual, coletiva e/ou social, de acordo com alguns teóricos, como: Halbwachs, Le Goff, Pollak, dentre outros. O que muda as vezes, é o ponto de vista de como esses teóricos explanam, como a memória coletiva, interpretada como memória social em alguns estudos. Mas Le Goff (1990) faz essa distinção entre coletiva e social, até de forma didática, afirmando que memória coletiva está ligada as sociedades sem escrita, e, memória social, está ligada as sociedades com a escrita, ou seja, a memória social tem como testemunha a escrita, diferente da memória coletiva, no qual tem uma sociedade exclusivamente oral.
Percebemos que, a memória individual não se separa da memória coletiva, embora elas possuam características distintas. No nosso entendimento, para se conceituar memória coletiva, temos que primeiramente definir memória individual, e é a partir do pensamento de Le Goff (1990) que chegamos a esse ponto. Para ele, a memória parte de um fenômeno individual e subjetivo do homem, possibilitando-o informações do passado. Essa memória individual pode ser compartilhada ou não. E apesar de ser um fenômeno singular, caso seja partilhada dentro de um grupo, passa a ter outra denominação, o que chamamos de memória coletiva.
A memória como tema principal para a discussão teórica deve ser um dos principais pontos para refletir esse trabalho, pois através dessa imagem memorialista que será analisado a dor, ou seja, o vermelho amargo idealizado pelo tomate, de perder a mãe. Para tanto, precisamos nos apoiar em estudos como de Halbwachs (2003), um dos principais nomes e teóricos dos estudos da memória, principalmente a memória familiar, pois além de ser um dos assuntos que reflete a teoria desse escritor é também algo que está ligado diretamente ao romance Vermelho Amargo.
Halbwachs (2003) ressalta que a memória coletiva e o ambiente material podem mudar com acontecimentos que modifiquem o grupo ou o lugar. Se entendermos que memória coletiva pode ser o grupo e que o grupo convive em um determinado ambiente material, um acontecimento pode mudar tudo, desde que esse evento, seja realmente algo que agite a estrutura desse meio familiar. No capítulo Memória coletiva e espaço, do livro A memória coletiva, Halbwachs (2003) exemplifica que a morte e o casamento são episódios dessa natureza. Se pegarmos a morte como exemplo, entendemos que obra Vermelho Amargo se enquadra exatamente no que o teórico ressalta, pois conta a história da perda da mãe de um garoto.
O tomate com símbolo representativo dessa memória está vinculado ao um espaço que foi marcado pelas lembranças do filho, que no primeiro momento nos revela uma memória individual, mas que também está vinculada a uma memória coletiva, no qual o espaço, a casa, é um ambiente habitado por um determinado grupo, que juntamente essas memórias se interrelacionam. Neste sentido, toda e qualquer memória está inserida em um contexto espacial. Para Halbwachs (2003)
«[…] o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem umas às outras, nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja possível retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que nos circunda. É ao espaço, ao nosso espaço – o espaço que ocupamos, por onde passamos muitas vezes, a que sempre temos acesso e que, de qualquer maneira, nossa imaginação ou nosso pensamento a cada instante é capaz de reconstruir – que devemos voltar nossa atenção, é nele que nosso pensamento tem de se fixar para que essa ou aquela categoria reapareça.» (HALBWACHS, 2003, p.170)
Sendo assim, percebemos que o ambiente material dessa criança é a casa, onde sua família mora, marcada por lembranças de toda uma vida. Como o teórico nos mostra, não podemos voltar ao passado se não existisse um ambiente material, pois é através desse ambiente que nossa memória é atravessada. Nossas lembranças não são despertadas sem algum estímulo, existe algo que toca esse feito. É a partir do ambiente material que percebemos um despertar da nossa imaginação e do nosso pensamento.
Na obra de Bartolomeu, a casa do menino narrador, tornou-se seu berço memorialístico para todas suas angústias, medo e até saudade, mas antes de tudo, a casa é o nosso reino, nosso lar, como afirma Bachelard (2008), “pois a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo”. Ainda que essa casa fosse seu habitat, e que, trouxesse lembranças boas, pois a casa para Bachelard (2008), “guardavam os tesouros dos dias antigos”, para nosso pequeno narrador, esses tesouros, juntavam-se a questões que não podemos chama-las somente assim, pois guardavam também lembranças dolorosas.
“Sem a mãe, a casa veio a ser um lugar provisório. Uma estação com indecifrável plataforma, onde espreitávamos um cargueiro para ignorado destino. Não se desata com delicadeza o nó que nos amarra à mãe. Impossível adivinhar, ao certo, a direção do nosso bilhete de partida. Sem poder recuar, os trilhos corriam exatos diante de nossos corações imprecisos. Os cômodos sombrios da casa — antes bem-aventurança primavera — abrigavam passageiros sem linha do horizonte. Se fora o lugar da mãe, hoje ventilava obstinado exílio. Oito. A madrasta retalhava um tomate em fatias, assim finas, capaz de envenenar a todos. Era possível entrever o arroz branco do outro lado do tomate, tamanha a sua transparência. Com a saudade evaporando pelos olhos, eu insistia em justificar a economia que administrava seus gestos. Afiando a faca no cimento frio da pia, ela cortava o tomate vermelho, sanguíneo, maduro, como se degolasse cada um de nós. Seis.”
O garoto não reconhecia mais a sua casa, ela não tinha mais direção. Não devemos arrancar de uma criança suas raízes familiares, principalmente, o amor de uma mãe. Para ele, o ambiente se tornara um verdadeiro mausoléu, antes considerado um lugar de amor, ternura e paz. A comida também já não era a mesma. O tomate, símbolo memorialístico na obra, era cortado pela madrasta diferentemente como sua mãe cortava. Durante o preparo das refeições, o menino tentava entender a forma como sua madrasta preparava o alimento, e, percebia durante o processo, a falta de sentimentos “bons” por sua família.
Um fato presente na obra como na voz do narrador é a imagem memorialista. As lembranças são como imagens que temos ao lembrar de um passado. Walter Benjamim em Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política, especificamente em a Imagem de Proust trata exatamente dessa questão emblemática da lembrança ao convocar suas memórias. Segundo Benjamin (1993)
“[…] As crianças conhecem um indício desse mundo, a meia, que tem a estrutura do mundo dos sonhos, quando está enrolada, na gaveta de roupas, e é ao mesmo tempo “bolsa” e “conteúdo”. E, assim como as crianças não se cansam de transformar, com um só gesto, a bolsa e o que está dentro dela, numa terceira coisa – a meia -, assim também Proust não se cansava de esvaziar com um só gesto o manequim, o Eu, para evocar sempre de novo o terceiro elemento: a imagem, que saciava sua curiosidade, ou sua nostalgia.” (BENJAMIN, 1993, p.39-40)
Assim como na imagem de Proust, de Walter Benjamin, a obra Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos de Queiróz nos revela em correspondência da sua narrativa um teor de memórias acionadas por uma criança, isso faz com que tenhamos uma percepção de transformação de um elemento como o tomate. É notório perceber como a nostalgia do menino narrador tem semelhança com Proust, ao ficar não somente no seu leito abatido, mas por todo sua casa, por quase todo tempo de convivência com seu pai, madrasta e irmãos. O tomate como figura simbólica igual a meia de Proust nos ajuda a entender através da fantasia da criança a criar uma imagem memorialística necessária para o estudo e análise desse trabalho.
Notas de análise
No início da obra, trechos do segundo e do quarto parágrafo dialogam entre si. A imagem memorialística está presente na visão do narrador, é uma memória marcada pela saudade do passado daquilo que se foi um dia. Quando ele (narrador) está contando a história, principalmente falando das suas dores, onde tudo dói, podendo ser conferido no segundo parágrafo, onde os olhos também doem, além de doerem, armazenam imagens dessas dores, ou seja, imagens das lembranças, “Também os olhos, que só armazenam imagens do que já fora, doem”. Não distante a isso, no quarto parágrafo constatamos “Com saudade evaporando pelos olhos, eu insistia em justificar a economia que administrava seus gestos”. Só sentimos saudades quando lembramos de algo do passado, saudade refere-se tudo aquilo que passou, que nos remete a lembrança e, portanto, a memória.
O teórico Halbwachs (2003) reforça que a memória e o ambiente material podem modificar de acordo com alguns acontecimentos. A morte seria um desses episódios, pois é o que acontece em Vermelho Amargo, onde a criança narra sua história marcada por sua dor de perder a mãe. Vejamos:
“Sem a mãe, a casa veio a ser um lugar provisório. Uma estação com indecifrável plataforma, onde espreitávamos um cargueiro para ignorado destino. Não se desata com delicadeza o nó que nos amarra à mãe. Impossível adivinhar, ao certo, a direção do nosso bilhete de partida. Sem poder recuar, os trilhos corriam exatos diante de nossos corações imprecisos. Os cômodos sombrios da casa — antes bem-aventurança primavera — abrigavam passageiros sem linha do horizonte. Se fora o lugar da mãe, hoje ventilava obstinado exílio. Oito. A madrasta retalhava um tomate em fatias, assim finas, capaz de envenenar a todos. Era possível entrever o arroz branco do outro lado do tomate, tamanha a sua transparência.” […] (QUEIRÓS, 2011, p.5)
A casa de sua mãe tornou-se totalmente diferente depois de sua morte, para o menino agora é um lugar de exílio, onde tem que esconder até seus pensamentos. Em algum momento seu pai já estivesse percebido todo o sofrimento de seu filho, mas não fazia esforço algum, pois o álcool não permitia, era tocado pelo vício. Na visão do narrador personagem, o tomate, figura representativa, é usada como forma da madrasta colocar para fora todos os sentimentos ruins.
“O pai, amparado pela prateleira da cozinha, com o suor desinfetando o ar, tamanho o cheiro do álcool, reparava na fome dos filhos. Enxergava o manejo da faca desafiando o tomate e, por certo, nos pensava devorados pelo vento ou tempestade, segundo decretava a nova mulher. Todos os dias — cotidianamente — havia tomate para o almoço. Eles germinavam em todas as estações. Jabuticaba, manga, laranja, floresciam cada uma em seu tempo. Tomate, não. Ele frutificava, continuamente, sem demandar adubo além do ciúme. Eu desconhecia se era mais importante o tomate ou o ritual de cortá-lo. As fatias delgadas escreviam um ódio e só aqueles que se sentem intrusos ao amor podem tragar.” (QUEIRÓS, 2011, p.5)
O tomate era a única fruta que a família tinha em demasiada fartura. Muito interessante perceber como o autor consegue usar esse fruto como símbolo representativo de sentimentos. O tomate era tudo, não só o que se tinha de mais negativo na família, porque ele poderia existir em abundância, mas carregava um sentimento nada agradável para o menino, o ciúme da madrasta, e para além disso tinha o que mais pesava em sua vida, a dor, a dor amarga de perder uma mãe.
Dentro de nós temos segredos que muitas vezes desconhecemos, por não saber mesmo ou porque muitas vezes não queremos externar para o mundo. Acabamos de certa forma escondendo até de alguém que confiamos. Benjamin (1993) fala disso em imagem de Proust, acontece mesmo que:
“Nem sempre proclamamos em voz alta o que temos de mais importante a dizer. E, mesmo em voz baixa, não o confiamos sempre à pessoa mais familiar, mais próxima e mais disposta a ouvir a confidência. Não somente as pessoas, mas também as épocas, tem essa maneira inocente, ou antes, astuciosa e frívola, de comunicar seu segredo mais íntimo ao primeiro desconhecido […]” (BENJAMIN, 1993, p.40)
A obra expõe de maneira muito sincera esses pensamentos do menino. Após a morte de sua mãe, ele se subordinou a muita coisa, a calar-se de ante de todos. E não somente isso, até mesmo deixar de ser quem era para atender caprichos e tentar ser enxergado naquela família, que talvez não via mais seu lugar. O tomate despertava novos sentimentos, agora não era mais o da perda e nem o ciúme de sua madrasta, era de transformação, tentava com aquele sabor tornar o melhor possível, a imagem da lembrança do amor de sua mãe.
“Sem o colo da mãe eu me fartava em falta de amor. O medo de permanecer desamado fazia de mim o mais inquieto dos enredos. Para abrandar minha impaciência, sujeitava-me aos caprichos de muitos. Exercia a arte de me supor capaz de adivinhar os desejos de todos que me cercavam. Engolia o tomate imaginando ser ambrosia ou claras em neve, batidas com açúcar e nadando num mar de leite, como praticava minha mãe — ilha flutuante — com as mãos do amor.” (QUEIRÓS, 2011, p.6)
Vermelho Amargo tem notoriedade diante da crítica por receber vários prêmios, principalmente pelo melhor livro do ano em 2012. A morte do autor Bartolomeu Campos de Queirós tornou em torno de sua obra maior curiosidade, pois vincularam a narrativa como uma autobiografia, como se o próprio autor tivesse voltado ao passado para rever suas lembranças. Diante do exposto, Garcia (2016) afirma que:
“Diferentemente de outros autores que muitas vezes usam da criação de memória dos romances para afirmar aquilo como retrato fiel de uma época ou situação (sem levar em consideração tanto a elaboração que faz parte do processo de memória, quanto a estetização desta memória que ocorre na sua transcrição para o objeto artístico), nas poucas entrevistas que Bartolomeu conseguiu dar sobre o livro antes da morte, ele sabiamente escapou desta cilada de afirmar a memória como retrato fiel e integral da sua época de infância, e, além disso, soube levantar a questão de estetizar a memória a favor do jogo ficcional.” (GARCIA, 2016, p.183)
Pela interpretação de Garcia (2016), percebemos que o texto de Queirós não se trata de uma autobiografia “pura”, vamos chamar assim, se levarmos em consideração sua celebre frase “Não existe memória pura. O livro foi feito do que vivi e do que inventei”, podemos constatar que embora afirme que exista na obra muito do que viveu, há na outra parte invenção, fazendo com que a novela realmente tenha um teor ficcional. Garcia (2016) ainda relaciona que nem sempre falar ou escrever sobre memória necessariamente estaremos fazendo biografia como muitos autores.
O escritor Bartolomeu Campos de Queirós levanta a dúvida quanto sua obra ser autobiográfica por apresentar algumas características específicas, mesmo afirmando que um texto não se constrói somente daquilo que viveu, mas também daquilo que foi inventado. Uma dessas características é o fato de a novela dele trazer uma narrativa em primeira pessoa, assim leva determinado público entender que existe uma autobiografia.
Nesse sentido, quando concebemos uma biografia, imaginamos algo escrito com começo, meio e fim. Bourdieu (2012) faz uma crítica a essa linearidade quando diz que é significativo que o abandono da estrutura do romance como relato linear tenha coincidido com o questionamento da visão da vida como existência dotada de sentido, no duplo sentido de significação e de direção. Para ele:
“Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um ‘sujeito’ cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar e conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações” (BOURDIEU, 2012, p.189-190)
Sendo assim, é comum pensarmos a vida como uma forma unidimensional, mas nem nossa própria vida segue uma linearidade, mesmo que saibamos das fases da existência humana é possível acontecer fatos inimagináveis durante o processo vital. Boudieu (2012) vai chamar essa linearidade de ilusão retórica, pois se concentra em escrever uma biografia de forma cronológica. Se pegarmos Vermelho Amargo de Queirós vamos perceber que foge totalmente dessa característica apontada.
No livro Vermelho Amargo quase todo parágrafo equivale a um capítulo, como se em cada um fosse prosas poéticas abarrotadas de bastante informações sobre a história. Para o menino narrador a dor de perder sua mãe é uma dor imensurável, tanto que em várias passagens da obra conseguimos sentir ao ler. O menino chega a fazer até comparações, para ele a dor do parto também é de quem nasce:
“Há que experimentar o prazer para, só depois, bem suportar a dor. Vim ao mundo molhado pelo desenlace. A dor do parto é também de quem nasce. Todo parto decreta um pesaroso abandono. Nascer é afastar-se — em lágrimas — do paraíso, é condenar-se à liberdade. Houve, e só depois, o tempo da alegria ao enxergar o mundo como o mais absoluto e sucessivo milagre: fogo, terra, água, ar e o impiedoso tempo.” (QUEIRÓS, 2011, p.5)
Percebemos na obra que essa comparação que o narrador faz onde a dor não é somente da mãe ao dar à luz, mas também da criança ao nascer. Em momentos distintos durante a narrativa essa afirmação vai reverberando. Quando o narrador nos propõe a refletirmos sobre esse fenômeno da natureza que é o nascer para a vida, ele quer através do seu texto nos revelar sobre a própria dor de viver com as barreiras que somente a vivência humana é capaz. E novamente volta a falar sobre essa dor, pois:
“Que a vida não tinha cura, o tempo me ensinou, e mais tarde. Na infância o calendário fora inventado para marcar o Natal, a Semana Santa, as férias da escola, os aniversários. Os dias deslizavam preguiçosos, repetindo manhãs e tardes, entremeadas por serenas estações. Impossível para uma criança viver a lucidez da ferida que se abre ao nascer, e não há bálsamo capaz de cicatrizá-la vida afora. Nascer é abrir-se em feridas.” (QUEIRÓS, 2011, p.8)
A prosa poética Vermelho Amargo tem uma escrita muito densa, cheio de figuras de linguagem, com o risco de cair em deslise de interpretações errôneas, mas o texto possui muitas questões que são visíveis aos olhos dos leitores, como, o sentimento de ódio e inveja da madrasta, o amor incondicional de um filho para sua mãe, as mentiras que o próprio narrador (o menino) coloca como sendo uma válvula de escape e aquilo que nos toca profundamente, a saudade da perda de sua mãe.
“Minha mãe prezava as rendas pelo que havia nelas de fragilidade e trabalho. Todas as suas costuras eram arrematadas com rendas nas margens. Na ausência de rendas, ela mesma as tecia, pacientemente, com linhas de seda, trazidas da China, para presentear nossos olhos com mais cortesia. Ela não escolhia os lados. Toda margem, mesmo as do riacho da cidade, merecia seu desvelo. Não, não é somente a flecha da palavra que acorda a memória de seu estupor. O incenso é um perfume que me suscita para a incerteza de Deus. A rara fragrância da alfazema guia-me para o bem profundo, pátria definitiva de minha mãe. O Lancaster me devolve à vaidade que houve. O ácido perfume do alecrim me abre em viagens por fazer. O odor da mortadela deslancha em mim fragmentos de afagos, relíquias escassas do pai. O tomate não exala nenhum cheiro. É da índole do tomate manifestar-se apenas em cor e cólera.” (QUEIRÓS, 2011, p.8)
Contudo, chegamos ao nosso objetivo que é de fato refletir sobre essa imagem em toda a obra, uma imagem memorialística desse Vermelho Amargo, representado pelo símbolo “tomate” de perder a mãe. O Tomate como símbolo figurativo que não só mostra ao leitor sentimentos negativos, como pelas vezes que foi desempenhado pela madrasta, mas sentimentos bons, mostrado quando a mãe do menino, ainda viva, cozinhava e cortava-o para as refeições. Para além disso, a dor amarga de perder a mãe só quem podia mencionar era ele, e de forma poética diz:
“Coração do outro é uma terra que ninguém pisa. Minha mãe repetia essa oração quando recebia a visita de muda melancolia. Meu coração estava pisado pelo amor, e só eu sabia. Era um caminhar manso como pata de gato traiçoeiro. Fugia com meu amor para todas as penumbras. Seis minutos eram suficientes para a saudade me transbordar. Fui, desde pequeno, contra matar a saudade. Saudade é sentimento que a gente cultiva com o regador para preservar o cheiro de terra encharcada. É bom deixá-la florescer, vê-la brotar como cachos de tomates, desde que permaneçam verdes e longe de faca afiada. Nada tem mais açúcar que um tomate verde.”
Notas conclusivas
Diante do exposto até aqui, esse trabalho analisamos como a imagem memorialística está presente nas lembranças do menino (personagem principal) da obra. A memória, tema principal do romance, é um recurso que o narrador utiliza ao evocar suas lembranças do passado, referente principalmente a saudade de sua mãe, além de usar o símbolo “tomate” como figura representativa de sentimentos bons, ruins, como também de sentimento como a dor da perda.
A obra não apresenta uma autobiografia, ou pelo menos não uma autobiografia pura, pelas próprias palavras do escritor Bartolomeu Campos de Queirós, podemos concluir quando o mesmo afirma: “Não existe memória pura. O livro que foi feito do que vivi e do que inventei”. Trata-se, portanto, de uma ficção.
Portanto, a partir dessas discussões, percebemos que o romance Vermelho Amargo, ao apresentar as experiências do protagonista através da imagem memorialística, fortaleze a representação da dor de perder a mãe. Sendo assim, os suportes teóricos usados contribuíram para a construção da análise dos elementos ligados a imagem dessa memória que constrói uma narrativa delicada e poética no romance em estudo.
Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Martins Fontes, 2008.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,1993. p.36-49
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs). Usos e abusos da história oral. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 183-191.
DE OLIVEIRA CARVALHO, Katia; FRANCO, Claudia Miranda da Silva Moura; DE MORAES, Marília Gabriela Barros. VERMELHO AMARGO: DOCE AMOR DE MÃE. VERMELHO AMARGO: DOCE AMOR DE MÃE, p. 1-388–416.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.
GARCIA, Eduardo Veloso. A memória e o tomate em Vermelho Amargo, de Bartolomeu Campos Queirós. Revista Investigações, v. 29, n. 1, p. 174-200.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão… [et al.] – Campinas: SP. Editora da UNICAMP, 1990.
NAVAS, D.; RAMOS, A. M. Literatura juvenil dos dois lados do Atlântico. São Paulo: EDUC, 2020.
NORA, Pierre et al. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 10, 1993.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista estudos históricos, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992.
SANTOS, Andrea Soares; XAVIER, Joelma Rezende. MEMÓRIA E PARTILHA DO SENSÍVEL NA NARRATIVA DE VERMELHO AMARGO, DE BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS. VERBO DE MINAS, v. 15, n. 25, p. 19-27, 2014.
Nota
* Paulo Geovane Sousa Almeida es Mestrando na área de Literatura e Cultura, na linha de pesquisa: Literatura, Historiografia e memória cultural, pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI.
