
Ival de Assis Cripa*
Resumo: O artigo relaciona literatura e pintura, a partir da análise do livro “Facundo, Civilização e Barbárie” e da análise de algumas telas sobre a América do Sul, produzidas pelos pintores europeus Raymond Quinsac de Montvoison e Leon Ambroise Gauthier. Objetiva-se compreender como a literatura e a pintura contribuíram com a construção de alguns estigmas sobre a Argentina e a cultura do «gaúcho do Sul.» O artigo toma como referência a noção de “comunidades imaginadas” de Benedict Anderson e a obra de Edward Said e busca compreender como a literatura, a pintura e a escrita da história foram usadas para legitimar a construção de determinados discursos com forte conotação eurocêntrica. O artigo aborda as relações de diálogo e de mútua influência entre a literatura e a pintura, a partir da construção de um certo paradigma interpretativo sobre a América Latina, cujo principal precursor foi o escritor argentino Domingos Faustino Sarmiento.
Palavras chave: América do Sul, Literatura, Pintura, Século XIX, História Latino-Americana.
Literature, Painting and Eurocentrism In The Work Of Sarmiento And The Painters Raymond Quinsac de Montvoison and Leon Ambroise Gauthier
Abstract: The article relates literature and painting, based on the analysis of the book “Facundo, Civilization and Barbarism” (Facundo, Civilização e Barbárie) as well as the analysis of some canvases about South America, produced by European painters Raymond Quinsac de Montvoison and Leon Ambroise Gauthier. The aim is to understand how literature and painting contributed to the construction of some stigmas about Argentina and the culture of the «Southern Gaucho.» The article takes Benedict Anderson’s notion of imagined communities and the work of Edward Said as a reference point and seeks to understand how literature, painting and the writing of history were used to legitimize the construction of certain discourses with a strong Eurocentric connotation. The article addresses the relationships of dialogue and mutual influence between literature and painting, based on the construction of a certain interpretative paradigm about Latin America, whose main precursor was Argentine writer Domingos Faustino Sarmiento.
Keywords: South America, Literature, Painting, 19th Century, Latin American History.
I. Possiblidades de Abordagens de Temas Latino-Americanos Sob a Perspectiva da Crítica ao Orientalismo de Edward Said
O artigo pretende explorar as possibilidades de abordagem de temas latino-americanos sob a perspectiva da crítica ao “Orientalismo. Segundo Edward Said [1], o orientalismo pode ser definido como: 1-Um estilo de dominar a partir de uma distinção ontológica entre o Ocidente e Oriente; 2- Uma relação de poder e dominação; 3- Um discurso que se diz “verídico” sobre o poder da Europa sobre o Oriente:
O orientalismo é um estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre «o Oriente» e (a maior parte do tempo) «o Ocidente». Assim, um grande número de escritores, entre os quais poetas, romancistas, filósofos, teóricos políticos, economistas e administradores imperiais, tem aceitado a distinção básica entre Leste e Oeste como o ponto de partida para teorias elaboradas, epopeias, romances, descrições sociais e relatos políticos a respeito do Oriente, dos seus povos, costumes, «mentalidade», destino e assim por diante. (SAID: 2007, p. 29)
Segundo Said, o Oriente é muito mais valioso para o Ocidente como signo de poder europeu-atlântico sobre o Oriente. O discurso orientalista pressupõe uma consciência geopolítica; estética; econômica; histórica e filológica que separa o mundo em partes diferentes:
“É antes uma distribuição de consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos, históricos e filológicos: é a elaboração não só de uma distinção geográfica básica (o mundo é composto de duas metades, o Ocidente e o Oriente), como também de toda uma série de “interesses» que, através de meios como a descoberta erudita, a reconstrução filológica, a análise psicológica e a descrição paisagística e sociológica, o Orientalismo não apenas cria, mas igualmente mantém; é, mais do que expressa, uma certa vontade ou intenção de entender, e em alguns casos controlar, manipular e até incorporar, o que é um mundo manifestamente diferente (ou alternativo e novo).” (SAID: 1990, p. 24)
A relação entre Ocidente e Oriente, segundo a perspectiva de Said, é uma relação de dominação e poder, ou uma projeção Ocidental sobre o Oriente, expressão da vontade de governá-lo. Trata-se de um “discurso erudito” que se metamorfoseia em “uma [AS1] instituição imperial”, ou um sistema de pensamento sobre o Oriente:
“Pois, se é verdade que historiadores como Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt tramam suas narrativas «como uma história de um tipo particular», o mesmo vale para os orientalistas que delinearam a história, o caráter e o destino oriental por centenas de anos. Durante os séculos XIX e XX, os orientalistas se tornaram uma grandeza mais séria, porque a essa altura o alcance da geografia imaginativa e real havia encolhido, porque a relação oriental-europeia era então determinada por uma expansão europeia incontrolável em busca de mercados, recursos e colônias, e, finalmente porque o Orientalismo realizara a sua própria metamorfose, de um discurso erudito para uma instituição imperial.” (SAID: 1990, p. 104).
Sarmiento e outros escritores, poetas pintores e intelectuais cuja obra iremos analisar, construíram um modelo eurocêntrico para pensar a América Latina como um signo de poder europeu, um paradigma de intepretação semelhante ao discurso orientalista, ou o olhar colonialista europeu sobre o Oriente e sobre a América Latina. Trata-se de um “discurso ficcional no sentido foucaultiano do termo”, um “arquivo do tempo”, uma “práxis cultural e intelectual” (SAID: 1996, p. 139). São textos de especialistas com autoridade de acadêmicos e instituições que com seu prestígio não só criam conhecimento, mas também criaram a realidade que parecem descrever. Trata-se, para Said (SAID: 1996, p. 144), de uma “projeção ocidental sobre o Oriente e a vontade de governá-lo.” Sob nosso ponto de vista, projeções semelhantes foram produzidas sobre a América Latina, tal como iremos discutir nesse artigo.
Mas o Oriente, diz Said, não é uma fantasia. É um lugar onde as pessoas vivem e onde as coisas acontecem. Ou seja, nem o Oriente para Said, nem a América Latina, sob nosso ponto de vista, são regiões paradas no tempo. Pretendemos relacionar essa distinção ontológica do orientalismo, que separa rigidamente “Ocidente” e “Oriente”, com as dicotomias estabelecidas por Sarmiento (1996: p. 118), entre a cidade de Buenos Aires, considerada a cidade “mais poderosa na capacidade de conter elementos de “civilização europeia”, em oposição à “ignorância” e a “pobreza” das províncias do interior:
“A ignorância e a pobreza, que é a consequência, estão como aves de rapina esperando que as cidades do interior deem o suspiro para devorar sua presa, para transformá-la em campo, estância. Buenos Aires pode voltar a ser o que foi, porque a civilização europeia é tão forte ali que apesar das brutalidades do governo, há de sustenta-se. (…) Perguntam-nos agora por que combatemos? Combatemos para trazer as cidades de volta à vida própria.” (SARMIENTO: 1996, p 118)
Sarmiento opunha o interior da Argentina com seu “nível barbarizador”, fruto do isolamento e da miscigenação com as populações autóctones, versus Buenos Aires, considerado por ele como o lócus mais forte da civilização europeia na região do Prata. Tais dicotomias entre a cidade e o campo, a civilização e a barbárie, na obra de Sarmiento, contribuíram com a construção de uma determinada “práxis intelectual” que inspirou a produção de imagens e discursos carregados de interpretações eurocêntricas e estigmatizantes sobre a formação cultural e histórica argentina e latino-americana. Segundo Maria Lígia Prado, Domingos Faustino Sarmiento “construiu uma interpretação carregada de ideias, imagens e símbolos, compartilhados, na mesma época, por contemporâneos brasileiros, ocupados com idêntica tarefa de compreender o próprio país (…) animando controvérsias e contribuindo para a cristalização de certos estereótipos sobre o continente.” (PRADO: 1999, p. 152)
A obra de Sarmiento e as telas a serem discutidas nesse artigo também podem ser compreendidas como um “arquivo do tempo”, segundo a definição de Michel Foucault.[2] O arquivo “é o que define o modo de atualidade do enunciado-coisa; é o sistema de seu funcionamento” (FOUCAULT: 2008, p. 147). A noção foucaultiana de “arquivo do tempo” compreende uma infinidade de práticas que permitem aos discursos subsistirem e se modificarem. O “arquivo do tempo” se concretiza em uma “práxis intelectual” que, ainda nos dias de hoje, é utilizada para justificar políticas repressivas contra indígenas, negros, mestiços, pobres, entre outros excluídos do modelo ideal de “civilização latino-americana” europeizada. Segundo Foucault,
“…o arquivo define um nível particular: o de uma prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como tantos acontecimentos regulares, como tantas coisas oferecidas ao tratamento e à manipulação. Não tem o peso da tradição; não constitui a biblioteca sem tempo nem lugar de todas as bibliotecas, mas não é, tampouco, o esquecimento acolhedor que abre a qualquer palavra nova o campo de exercício de sua liberdade; entre a tradição e o esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados.” (FOUCAULT: 2008 148).
II. Trajetória Intelectual e Política de Domingos Faustino Sarmiento e o Seu Contexto
Sarmiento nasceu numa aldeia na Província de San Juan, em 1811. Veio de um lar humilde, foi professor, jornalista e escritor. Lutou contra o tirano Rosas, chegou à patente de General e foi presidente da Argentina. Seu principal livro foi “Facundo, Civilização e Barbárie”. Trata-se de um texto literário, uma biografia, escrita contra um inimigo político de Sarmiento, Facundo Quiroga, que segundo Sarmiento representava a Argentina corroída pelo colonialismo e barbarizada pelo atraso. É uma biografia de um caudilho.[3]
Para compreender a trajetória e a obra de Sarmiento é preciso recuperar um pouco da história do Vice-Reinado do Rio da Prata, após a Independência que, para León Pomer, tratava-se de “uma diversidade sem unidade”. Não havia, ali, nem vínculos administrativos, nem laços mercantis capazes de unificar regiões separadas por enormes distâncias quase desertas. De um lado, havia as praças comerciais como Buenos Aires e Montevidéu, de outro, as cidades do interior de pequena importância. Nem todas as regiões do Prata estavam aptas para produzir produtos exportáveis.
Para a Europa interessava os couros e os gados da Argentina. Do Peru e do Chile interessava a prata. Tratava-se de uma região como uma enorme heterogeneidade das estruturas produtivas e com estruturas sociais díspares e singulares de região para região. No Noroeste e Centro Oeste do Vice-Reinado da Prata havia uma presença maciça de mão de obra indígena organizada num complexo esquema de divisão do trabalho. Com o declínio da mineração no Alto do Peru tais sociedades declinam em sua estrutura produtiva para a agricultura e o artesanato e suas economias retornam, de uma economia monetária, para uma economia natural baseada na troca. A mão de obra foi vendida ou alugada para mineiros chilenos e bolivianos.[4]
A Argentina, recostada sobre a Cordilheira dos Andes, se fixou mais solidamente. Nesse país, a população nativa diminuiu rapidamente e a atividade predominante era a criação do gado. Nas planícies próximas a Buenos Aires, Santa Fé e Entre Rios praticou-se a criação extensiva de gado com pouca necessidade de mão de obra. O trabalho utilizado era livre e tinha como salário alimentos, couro, alojamento e às vezes dinheiro, afirma Leon Pomer. Essa sociedade rural, baseada na pecuária extensiva, é a sociedade desagregada que descreve Sarmiento. Uma sociedade em que predominam os vaqueiros ou gaúchos que desenvolvem habilidades de guerra: o manejo da faca, a cavalgadura e o porte de armas. Os vaqueiros são ao mesmo tempo trabalhadores na lida com o gado e um exército a serviço dos caudilhos na luta pela Independência da Argentina. Esse universo é a “barbárie” para Sarmiento:
“Esta é a história das cidades argentinas. Todas elas têm que reivindicar glórias, civilização e notabilidade. Agora o nível barbarizador pesa sobre elas. A barbárie do interior chegou a penetrar até as ruas de Buenos Aires. De 1810 a 1840 as províncias que encerravam em suas cidades tanta civilização foram demasiado bárbaras para destruir com seu impulso a obra colossal de revolução da independência. Agora que nada lhes resta do que tinham em homens, luzes e instrução, o que será delas? A ignorância e a pobreza, que é conseqüência, estão como as aves de rapina esperando que as cidades do interior dêem o último suspiro para devorar sua presa, para transformá-lo em campo, estância. Buenos Aires pode voltar a ser o que foi, porque a civilização europeia é tão forte ali que, apesar das brutalidades do governo, há de sustentar-se. Mas as províncias se apoiarão em quê?” (SARMIENTO: 1996, p. 125).
Sarmiento e os membros da geração de 1837 concordavam de forma quase unânime com a ideia da inadequação dos grupos étnicos da Argentina, ou suas “raças”, afirma Shumway (2008, p. 189), como eram chamados. Em uma passagem de “O Facundo” Sarmiento afirma:
“Além do mais, da fusão destas três famílias [espanhola, africana e indígena], resultou um todo homogêneo, que se distingue por seu amor à ociosidade e incapacidade industrial, quando a educação e as exigências de uma posição social não lhe dão esporadas e o tiram de seu ritmo habitual. Muito deve ter contribuído para produzir este resultado infeliz a incorporação dos indígenas feita pela colonização. As raças americanas vivem na ociosidade e se mostram incapazes, mesmo pela coação, de se dedicarem a um trabalho duro e contínuo. Isto sugeriu a idéia de introduzir negros na América, que tão fatais resultados produziram. Mas não se mostrou melhor dotada de ação a raça espanhola quando se viu, nos desertos americanos, abandonada a seus próprios instintos.” (SARMIENTO: 1996, p. 73).
III Civilização e Barbárie: a construção de um paradigma por Sarmiento e “Geração de 1837”
Como vencer a barbárie? Segundo Sarmiento, a educação seria o antídoto para neutralizar os vícios do homem rural, além de uma política de imigração que estimulasse a vinda de uma elite mais culta para a Argentina! Seria preciso, também, para vencer a barbárie, acabar com o latifúndio. “Civilizar” a Argentina para Sarmiento significava incorporar os usos e costumes norte-americanos e europeus. As cidades eram, para ele, o refúgio da civilização e o seu centro irradiador: “O homem da cidade veste o traje europeu, vive a vida civilizada tal como conhecemos em toda parte; ali estão as leis, as ideias de progresso, os meios de instrução, alguma organização municipal, o governo regular etc” (SARMIENTO: 1996, p. 75). Buenos Aires seria, para ele, um tentáculo da Europa no Prata: a melhor de todas as cidades, com homens de fraque, que eram cultos. Buenos Aires, diz Sarmiento, a mais europeizada e adiantada cidade da região do Prata.
Sarmiento pertenceu à geração de intelectuais conhecida como Geração de 1837. Dela faziam parte: Juan Batista Alberdi, Juan Maria Gutierrez, Vicente Fidel Lopes, Esteban Echeverria. Inspirados na filosofia iluminista, essa geração propunha que, para uma sociedade “atrasada”, a solução era uma democracia restrita para poucos, ou seja, um governo aristocrático. A Geração de 1837 provém de um Salão Literário organizado em maio de 1837, diz Nicolas Shumway, em uma livraria de Buenos Aires, onde se reuniam para ler, discutir e conversar. Essa associação tinha como fonte de inspiração as jovens sociedades revolucionárias que despontavam em toda a Europa e ficou conhecida como La Asociación de Mayo, como referência ao movimento de Independência de maio de 1810 (SHUMWAY: 2008; 172).
A Geração de 1837 foi formada por um grupo de jovens entusiastas, quase todos entre vinte e trinta anos, que organizaram uma sociedade literária e estabeleceram uma atitude crítica com relação ao seu país. O grupo, afirma Shumway, produziu algumas “ficções diretrizes” das mais duradouras na Argentina e assumiu a responsabilidade de duas importantes tarefas: “identificar, sem idealizar, os problemas enfrentados pela Argentina e criar um programa de ação que faria dela uma nação moderna. Ao descrever os problemas nacionais, criou o que se tornou um gênero pouco feliz da literatura argentina: a explicação do seu fracasso.” (SHUMWAY: 2008, p. 157). Tal obsessão pelo fracasso dava-se em função de que durante os anos de sua formação todos os membros desse grupo testemunharam o insucesso das províncias em formar a unidade, uma incapacidade dos liberais portenhos em criar uma política inclusiva, o fracasso das massas em eleger políticos responsáveis, afirmar Shumway.
Segundo Maria Lígia Prado (1999), o contexto pós-independência foi um momento em que a Argentina estava dividida politicamente entre os que defendiam um governo centralizado, campo de Sarmiento e da Geração de 1837, os Unitários, contra os Federalistas, defensores da autonomia radical das províncias, campo de Juán Manuel Rosas e outros caudilhos. A história da Geração de 1837 e a identidade do grupo como um todo está paradoxalmente associada à hegemonia de Juan Manoel Rosas, um ditador que dominou a Argentina entre 1829 e 1852. Durante a ditadura de Rosas, os membros da Geração de 1837 foram obrigados a refletir sobre os motivos que levaram seu país a instituir uma ditadura.
Dado a importância da polêmica, só podemos falar em Estado Nacional organizado na Argentina após 1862, quando Bartolomeu Mitre assumiu a presidência nacional. E segundo Nicolas Shumway, “Apesar do século e meio que nos separa de seus primeiros textos, pode-se dizer que a Geração de 1837 continua sendo o grupo intelectual mais reputado do país.” (SHUMWAY: 2008, p. 157). Os escritos dos membros da Geração de 1837 uma característica dos escritores hispano-americanos que se mantém até os dias atuais, pois suas obras, afirma Shumway, têm um acabamento imperfeito, “como pão retirado do forno na última hora”, para usar uma expressão de A. Reyes. Isso se deve ao fato de que estamos falando da produção intelectual de homens de ação, que vivendo em uma sociedade caótica, seus escritos não são um fim em si mesmo.
A Geração de 1837 não pode ser avaliada sem o pano de fundo da ditadura de Rosas. Em Buenos Aires, o estancieiro Juan Manuel Rosas chegou ao governo provincial em 1829 e permaneceu no poder até 1842, quando foi derrotado na batalha de Caseros pelos unitaristas. Rosas governou Buenos Aires e toda a Argentina a partir de uma série de pactos com outros governadores, caudilhos locais e sempre com mão de ferro. Conseguiu respaldo popular, atendendo às demandas dos setores pecuaristas, pois legalizou a propriedade da terra e disciplinou as forças de trabalho, atendendo algumas reivindicações populares. Foi um período de polarização política e de guerras civis intermitentes entre os Federalistas (Rosas e Facundo Quiroga) versus os Unitaristas (grupo de Sarmiento).
Para não assustar seus inimigos, Rosas preferiu usar seu poder com prudência durante o primeiro mandato. Passou a defender a propriedade “liberando” ou desapropriando mais terras indígenas e fortificou a defesa contra possíveis reações desses indígenas. Conseguiu impor um mínimo de responsabilidade fiscal para conter a dívida alta do governo e impressionou até os ingleses com sua gestão, diz Shumway. Aprofundou as relações com os ingleses, restringiu a liberdade de imprensa, negligenciou a educação, apoiou o clero conservador, fortaleceu o exército e conteve seus críticos, mandando os membros da Geração de 1837 e Sarmiento para o exílio, principalmente no Chile.
Em novembro de 1832, no prazo prescrito, Rosas renunciou após restituir à Câmara os poderes “extraordinários” que havia recebido. Mas após o fracasso de duas rápidas administrações, diz Shumway, a câmara voltou a nomear Rosas governador que, após forte pressão da burguesia latifundiária, sua principal base política, concordou em aceitar o cargo, desde que lhe fosse outorgada a “totalidade do poder público”. Segundo Nicolas Shumway, começava assim a ditadura Rosas, uma ditadura que não foi imposta pela força, nem por um golpe militar, mas contou com o consentimento dos legisladores e da sociedade argentina que estavam exauridos pela guerra. (Ver SHUMWAY: 2008, p. 164). Embora fosse oficialmente governador de Buenos Aires, nos dezessete anos seguintes Rosas dominou a política argentina. Rosas se manteve no poder até 1852 sem realizar eleições, pois para efeito de relações públicas, afirma Shumway, realizava eleições, mas sem candidato opositor. Rosas costumava enviar rotineiramente sua renúncia ao congresso que ele mesmo havia composto e que por isso rejeitava seu pedido, fazendo com que ele voltasse ao cargo. Tanto que mesmo Sarmiento, que era seu inimigo mais conhecido, chegou a afirmar que “por respeito à verdade histórica [que] nunca houve um governo mais popular, mais desejado ou mais apoiado pela opinião pública” (SARMIENTO, pag. 30, APUD SHUMWAY, p. 164).
Rosas também era apoiado pelos pobres, que foram seduzidos pelo seu carisma paternalista e imperial, que falava e cavalgava como um gaúcho, mas ostentava ares de realeza. Rosas não era um intelectual, mas foi influenciado pelo seu primo Tomás Manuel Anchorena, um reacionário inspirado no pensamento conservador de Edward Burke e Joeph de Maistre, críticos da Revolução Francesa. Embora desfrutasse de grande popularidade, Rosas não era um “verdadeiro populista”, diz Shumway: “Rosas assim revelou o outro lado, o lado antipopular, do federalismo argentino: uma noção aristocrática de autoridade e privilégio que podia beneficiar os pobres por apenas um impulso paternalista, mas que nunca considerava os de berço humilde como cidadãos iguais a todos os outros em um governo pluralista. O que ele fez foi restaurar a sociedade hierarquizada dos monarcas espanhóis” (SHUMWAY, 2008, p. 166).
Vamos recuperar agora, alguns dados da biografia de Sarmiento. Em 1827, lutou contra os caudilhos José Félix Aldão e Juan Facundo Quiroga, o que fez com que fosse obrigado a emigrar para o Chile, em 1831, com vinte anos de idade. Para escapar da repressão, muitos dos adversários de Rosas foram para o exílio, no Uruguai ou no Chile, onde se organizavam para lutar contra Rosas. Em 1852, em Montevidéu, se alistou nas tropas do General Urquiza que derrotou Juan Manuel Rosas. Em 1855, Sarmiento era redator do jornal “El nacional”, em Buenos Aires, e, em 1857, foi eleito Senador Provincial. Em 1852, foi eleito Governador da Província de San Juan. Em 1864, embaixador argentino nos EUA. Em 1868, recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade do Michigan. Nos EUA, foi eleito presidente da Argentina em 1868, onde ficou no poder até 1874. Como Presidente, ajudou a combater o Paraguai comandado por José Gaspar Rodrigues Francia. Incomodava lhe a reforma agrária e a política protecionista de Francia. Sarmiento considerava o Paraguai um país guarani e “bárbaro.”
Vale dizer que apesar do atraso e da crueldade, o governo de Rosas teve a seu favor algumas realizações: a economia cresceu de forma significativa e novas terras foram liberadas, indo para as mãos dos latifundiários. Rosas conseguiu negociar a dívida argentina com os credores ingleses de forma habilidosa, assegurando-se de que os gastos com a dívida não prejudicassem o pagamento dos militares e dos funcionários (ver: Shumway, 2008, p. 167). Passamos, agora, para a discussão da obra, “Facundo, Civilização e Barbárie”, a partir da análise de Maria Lígia Prado em, “Para ler O Facundo de Sarmiento”. Segundo a autora, o livro de Sarmiento é considerado um clássico do pensamento político latino-americano. “O Facundo, Civilização e Barbárie na Argentina” foi publicado em 1845, mas só foi editado em português em 1923. Esse atraso deve-se, como afirma Maria Lígia Prado, às difíceis relações entre o Brasil e os demais países da América Latina. Sarmiento, diz a autora, no afã de entender a Argentina, construiu uma interpretação carregada de ideias, imagens e símbolos compartilhados na mesma época por seus contemporâneos brasileiros, também ocupados em compreender o Brasil.
Segundo Maria Lígia Prado, para Sarmiento, na linha da tradição romântica, o homem aparecia como produto do meio. Na primeira parte do livro de Sarmiento elabora uma análise do meio geográfico da Argentina. Para Sarmiento, um grande mal do território argentino era a sua vastidão e a região dos pampas despovoada criava o terreno propício para as tendências autoritárias dominantes (Prado, 1999, p. 162). Dessa paisagem brotava a originalidade e a especificidade de um povo, diz Sarmiento, as quais permitiram o surgimento de tipos: o cantor, o baqueano, o rastreador e o gaúcho. Sobre a maneira como o meio forma o homem, Sarmiento afirma em “O Facundo”:
“Se das condições da vida pastoril, tal como a constituíram a colonização e a incúria, nascem graves dificuldades para uma organização política qualquer e muitas mais para o triunfo da civilização europeia, de suas instituições, (…) é sobretudo da luta entre civilização europeia e barbárie indígena, entre a inteligência e a matéria; luta imponente na América, e que dá lugar a cenas tão peculiares, tão características e tão fora do círculo de ideias em que foi educado o espírito europeu” (SARMIENTO: 1996, p. 85).
O meio geográfico, na perspectiva de Sarmiento, foi responsável pelo surgimento de outro tipo na Argentina, o gaúcho mau:
“(….) Chamam-no Gaúcho Mau sem que esse epíteto lhe seja totalmente desfavorável. A justiça o persegue há muitos anos; seu nome é temido, pronunciado em voz baixa, mas sem ódio e quase com respeito. É um personagem misterioso; mora na pampa, seu albergue são as moitas de cardos, vive de perdizes e mulitas, quando quer se regalar com uma língua, laça uma vaca, derruba-a sozinho, mata-a tira seu bocado predileto e abandona o resto às aves silvestres.” (SARMIENTO, 1996: p. 95).
A segunda parte do livro, depois de discutir o meio natural e os tipos que surgem nesse meio, Sarmiento dedica-se à biografia propriamente dita de Facundo, para mostrar que ele era um produto natural da sociedade argentina em um determinado ponto de sua evolução. Facundo seria um tipo de primitivo barbarismo, com seu instintivo ódio às leis e sua vida de perigos e ferocidade, os quais o aproximavam de um animal selvagem (Prado, 1999, p. 162). Maria Lígia Prado levanta a seguinte questão sobre o livro de Sarmiento: como Facundo serviu como arma ideológica para dois campos políticos em disputa? Considerado um dos fundadores do Estado Nacional argentino, Sarmiento recebeu aplausos daqueles que apoiavam o regime político idealizado pelos liberais depois da queda de Rosas. Até mesmo os socialistas, como o fundador do partido, Juan B. Justo, colocava Sarmiento na galeria dos grandes homens argentinos, da qual Rosas não fazia parte. Mas quando, nos anos 30 do século XX, ganhou força a corrente que fazia a crítica do Estado Liberal, a partir de uma ótica nacionalista, Rosas assumiu o papel de “verdadeiro” representante da argentinidade e o gaúcho tornou-se expressão do ser nacional, diz Prado (PRADO: 1999, p. 166).
Sarmiento e a geração de 1837 passaram a ser considerados os ideólogos da imposição de ideias estranhas e importadas, que pretendiam desnaturalizar a Argentina. Vale considerar, ainda, a partir do texto de Lígia Prado que, tanto Sarmiento, como os membros da geração de 1837, tinham clareza da importância da escrita da história para a construção da nacionalidade. A tarefa de construir a nação se associava à tarefa de escrever a história. Com tais objetivos, Sarmiento escreveu o “Facundo”. Em sua última obra importante, “Conflictos Y Armonías de las Razas em América”, Sarmiento retornou às explicações raciais para o fracasso da Argentina diz Shumway (SHUMWAY: 2008, p. 190). O livro foi escrito em 1883, quando Sarmiento tinha 75 anos e ele o considerava um “Facundo envelhecido”. Nesse livro, diz Shumway (SHUMWAY: 2008, p. 190), Sarmiento argumenta que apesar da Constituição ilustrada, de uma aparente democracia, da prosperidade, do transporte modernizado, das escolas, das academias e das universidades, e de todos os recursos do progresso, “a sociedade argentina de 1883, ainda melhor vestida e mais educada que no tempo de Rosas, continua prejudicada pela corrupção, o personalismo e um desprezo generalizado pelas instituições. (…) Sugere que o fracasso da democracia na América espanhola pode ser explicado simplesmente levando-se em conta a inadequação dos povos latinos para se governarem, especialmente quando combinados com ‘indígenas bárbaros’. ( SHUMWAY: 2008, p. 190).
Para Sarmiento, todos os líderes latino-americanos eram considerados bárbaros: Rosas, Francia, no Paraguai, e Artigas proviriam de uma “mistura infeliz” de sangue latino e indígena. No ensaio “El Constitucionalismo em la América del Sur”, um de seus últimos textos, Sarmiento voltou ao tema da incapacidade política da raça ao afirmar que “de todos os povos cristãos, só as raças latinas da América do Sul não foram capazes, por mais de setenta anos, de organizar um governo efetivo e duradouro” (SARMIENTO, pag. 273, APUD SHUMWAY: 2008, p. 191). Para Sarmiento, a Argentina só estaria em melhor situação porque, diferente dos outros países hispano-americanos, tinha uma população branca mais numerosa. Todos os escritores do grupo de 1837, de um modo geral, concordavam com esses argumentos de Sarmiento.
IV A Pintura Orientalista e a Iconografia do Gaucho
Roberto Amigo (2007) no artigo intitulado “Apuntes sobre la imagen del gaucho y el orientalismo de los pintores franceses”, afirma que durante o século XIX alguns pintores franceses, ao passarem uma estadia na região do Rio da Prata, contribuíram com a implantação de um “modo de representação dos tipos rurais sob a perspectiva do discurso orientalista.” A “mirada orientalista” foi determinante na construção de toda uma iconografia do “gaúcho”, ao relacionar esse personagem com os “beduínos”, povos nômades que viviam no norte da África (conhecidos também como “povos da tenda”, habitantes de terras abertas). Segundo R. Amigo, a pintura de Raymond Quinsac de Montvoison, León Ambroise Gauthier, León Pallière y Marie-Gabriel Biessy, está intimamente relacionada com a obra literária de Domingo F. Sarmiento, “a la vez que se indican las variaciones de la pintura costumbrista desde la literatura gauchesca hasta el impacto de la literatura de folletín.” (AMIGO, 2007, p. 25)
O pintor August Raimond Quinsac Montvoison nasceu em Bordéus em 1790 e foi discípulo de Delacroix. Montvoison expôs sua obra em Paris e entre os anos de 1827 e 1842, empreendeu uma viagem à América do Sul, convidado pelo governo do Chile para fundar uma academia de arte em Santiago. Montvoison permaneceu apenas três meses em Buenos Aires e tomou contato com a obra de Sarmiento. Apesar do pouco tempo que permaneceu na Argentina, ele produziu várias telas sobre o país, passando depois pelo Peru e Brasil. Entre 1848 e 1857, Montvoison se instalou no Chile uma segunda vez e pintou uma tela Intitulada “Ali Pasha com sua Esposa Favorita, Kira Vassilki” (1846). A tela é uma imagem de Mehemer Ali, um sultão do Egito (1740-1822) com sua “esposa favorita”, que era grega:

Imagem 1: Ali Pasha (1740 – 1822) with his favourite mistress Kira Vassilki. Tela de Raymond Auguste Quinsac Monvoisin.
Sarmiento em “O Facundo”, cita a tela sobre “Ali Pasha…” de Montvoison e traça algumas semelhanças entre a expressão do sultão do Egito e a de Facundo, “…porque Facundo nunca olhava de frente e por hábito, por arte, por desejo de se fazer sempre temível, tinha sempre a cabeça inclinada e olhava por entre as sombrancelhas como o Ali-pachá de Montvoisin” (SARMIENTO: 1996, p. 131). Uma nota de Sarmiento faz uma comparação entre o árabe e um tipo contruído por ele, o gaúcho cantor, expressão da luta entre a barbárie, o “feudalismo” do campo contra o brilho “civilizado” das cidades: “O gaúcho cantor é o próprio bardo, o vate, o trovador da Idade média, que se move na mesma cena, entre as lutas da cidade e do feudalismo dos campos, (…) O cantor anda de pago em pago,’da tapera ao galpão’ cantando seus heróis do pampa perseguidos pela justiça” (SARMIENTO: 1996, p.96). Em uma nota de rodapé, na edição do “Facundo” de 1851 (na página seguinte ao framento citado acima), Sarmiento traça algumas semlhanças entre o árabe ao gaucho cantor:
“Não é fora de propósito lembrar aqui as semelhanças notáveis entre os argentinos e os árabes. Em Argel, em Orán, em Mascara e nos aduares do deserto vi sempre árabes reunidos em cafés, por lhes ser completamente proibido o uso dos licores, apinhados em redor do cantor, geralemente dois, que são acompanhados pela viola a dois, recitando canções nacionais, chorosas como nossos tristes. A tenda dos árabes é tecida de couro e com açoiteira, como as nossas; o freio que usamos é o freio árabe, e muitos costumes nossos revelam o contato de nossos pais com os mouros de Andaluzia. Das fisionomias, nem se fale: conheci alguns árabes que jurara tê-los visto em meu país.” (SARMIENTO: 1996, Nota do autor, p.97)
Outra tela de Montvoison, de 1842, intitulada “Soldado de Rosas”, pode ter inspirado a representação que Montvoison faz do sultão do Egito “Ali-pacha”. A caracterização que Sarmiento faz dos traços físicos e psicológicos do gaucho e em especial de Facundo Quiroga, é bem semelhante com a representação de Montovoison sobre os árabes e sobre o “Soldado de Rosas”:

Imagem 2: (TELA: Soldado de Rosas. Auguste Raymond Quinsac de Monvoisin, 842)
Basta lermos o fragmento e compararmos com a tela acima, para notarmos a semelhança. Provavelmente Montvoison se inspirou na obra de Sarmiento para produzir as duas telas que citamos. Sarmiento caracteriza da seguinte e maneira os traços físicos, expressivos e psicológicos de Facundo Quiroga:
“Facundo era de estatura baixa e robusto; suas costas largas sustinham sobre um pescoço curto uma cabeça bem formada, coberta de cabelo muito espesso, negro e crespo. Seu rosto, um pouco ovalado, estava afundado no meio de um bosque de pelo, uma barba igualmente espessa, igualmente crespa e negra, que subia até os pômulos, bastante pronunciados, para descobrir uma vontade firme e tenaz.” (SARMIENTO, 1996: p. 131)
Montvoison também representa o soldado de Rosas de forma “melancólica”, associando-o com a indolência, a ociosidade e a “preguiça”, traços associados aos preconceitos comuns com relação às mulheres no século XIX:
“…la cabeza ennegrecida apoyada sobre el puño, las piernas cruzadas, el aislamiento de la figura. Este temperamento estaba asociado tradicionalmente a lo femenino, aunque en el siglo XIX tales bagajes simbólicos se utilizaban con discreta libertad, sumado a que la melancolía era asociada con la desidia, es decir, con el pecado católico de la pereza.” (AMIGO: 2007, p. 4)
Segundo R. Amigo, a ligação entre o relato literário de Sarmiento e a tela converteu esse personagem em um “tipo ideal”:
“Recostado su cuerpo con indolencia, el soldado federal inclina su cabeza y nos mira entre la espesura de sus cejas renegridas al igual que el Facundo de Sarmiento. No sorprende la similitud descriptiva entre Soldado de Rosas y el pasaje citado al inicio –posterior tres años a esta obra de Monvoisin–; comparten, además, la operación de convertir la figura en un tipo conceptual.” (AMIGO: 2007, p. 20)
Montvoison representa ainda o gaúcho com uma imagem sensual, “en el sentido de la sexualidad bárbara e irracionalidad atribuida por los europeos a los hombres árabes”. (AMIGO: 2007, p. 6) A tela “Soldado de rosas” se inspirou no “Facundo” de Sarmiento, associando a figura do gaúcho à indolência e à preguiça. Uma outra tela que também caracteriza de forma semelhante o gaúcho dos pampas argentinos é a tela “Le gaucho cantor, barde de la république argentine” de León Ambroise Gauthier:

Imagem 3: (Gauthier. Le gaucho cantor, 1856; óleo sobre tela, 83 x 120 cm. Colección privada)
Trata-se de uma tela que tem a Cordilheira dos Andes ao fundo, enquanto um gaúcho toca um instrumento de cordas montado em seu cavalo, sendo ouvido por um grupo de mulheres, idosos e crianças, que estão deitados em almofadas dispostas numa cobertura de um rancho. As telas de Gauthier reproduzem, de certa maneira, os estigmas orientalistas sobre as mulheres, sempre representadas de forma passiva, sensual e “indolentes”, diz R. Amigo.
Segundo Roberto Amigo, a tela é complexa e inclui inclusive pequenos episódios pitorescos, tais como um menino brincando com um cachorro, uma mulher negra apoiada em um jarro de água e um casal conversando ao fundo. Temos, ainda, as figuras dos gaúchos que são centrais na pintura. Trata-se de uma obra de grande envergadura, “….de mayor tamaño y mayor complejidad que las realizadas por su compañero de estudios León Pallière, aunque posiblemente realizada con el mismo método: la unión compositiva de diversos apuntes y estúdios tomados a lo largo del viaje.” (AMIGO: 2007, p. 9) Ao que tudo indica, Gauthier foi leitor do “Facundo” de Sarmiento, pois utiliza os mesmos termos do escritor, tais como “gaúcho cantor” e “gaúcho mau.”
Em termos de história mundial, afirma Benedict Anderson, as burguesias foram as primeiras classes a consumar solidariedades numa base essencialmente “imaginada”, ou nações como comunidades imaginadas e que operam sempre pela exclusão do outro. Na América Latina, no contexto após as independências dos países da região no século XIX, diz Anderson, “brotaram estas realidades imaginadas: Estados nação, instituições republicanas, cidadania universal, soberania popular, bandeiras e símbolos nacionais” (ANDERSON: 1989, p. 92), sob as quais se criaram modelos, conceitos e projetos de formação dos Estados Nacionais latino-americanos. Em nome desses conceitos, guerras foram justificadas, massacres e execuções foram e continuam sendo justificados em nome do “progresso” e da “civilização”.
O surgimento das nações latino-americanas, pensadas “comunidades imaginadas”, exigiu por parte dos grupos dominantes a eliminação das várias formas de expressão da “barbárie” narrada por Sarmiento. Tais como a repressão de movimentos indígenas, movimentos sociais como o de Canudos no Brasil e o movimento de Tomóchic no México no final do século XIX. O paradigma inventado por Sarmiento, principal precursor da reflexão sobre a “barbárie-latino-americana” e o imaginário construído pelas classes dominantes sobre a barbárie latino-americana, continua a legitimar discursos e representações ideológicas em defesa da eliminação dos diferentes, dos “outros” considerados “inimigos” de um determinado projeto hegemônico e excludente de “civilização.”
Crédito das Imagens:
Imagem 2: (TELA: Soldado de Rosas. Auguste Raymond Quinsac de Monvoisin, 1842) IN: Les peintres français en Argentine au XIXème siècle (latitud-argentina.com). Acesso: 10/04/3024, 15:40.
Imagem 3: (Gauthier. Le gaucho cantor, 1856; óleo sobre tela, 83 x 120 cm. Colección privada)
In: Arquivo:O cantor gaúcho, 1856; León Ambroise Gauthier, óleo sobre tela, 83 x 120 cm.jpg – Wikimedia Commons. Acesso: 10/04/3024, 15:45.
Referências Bibliográficas
ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo, Ática, 1989.
AMIGO, Roberto. Beduinos en la Pampa Apuntes sobre la imagen del Gaúcho y el orientalismo de los pintores franceses. HISTORIA Y SOCIEDAD NO. 13, MEDELLÍN, COLOMBIA, NOVIEMBRE, PP. 25–4. 3
FOUCAULT, Michel, (2008).A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 7ed., 2008.
POMER, Leon. (org). Sarmiento: Política. (1983) São Paulo: Ática, (coleção Grandes cientistas sociais).
PRADO, Maria Lígia Coelho. A América Latina do Século XIX. Tramas, Telas e Textos. São Paulo: ESUSC\EDUSP, 1999.
SARMIENTO, Domingos Faustino. Facundo: Civilização e Barbárie. Petrópolis: Vozes, 1996.
SAID, Edward. Orientalismo, O Oriente como Invenção do Ocidente. São Paulo, CIA Das Letras, 2007.
SHUMWAY, Nicolas. A Invenção da Argentina, História de Uma Ideia.São Paulo, EDUSP, 2008.
Notas
* Ival de Assis Cripa es Doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Mestre em História Social pela USP. Professor da Faculdade de Comunicação Social do Centro Universitário UNIFIEO/BRASIL/São Paulo. Pos-doutorado em andamento sob a supervisão da professora Dra Vera Lucia Vieira, no Centro de Estudos sobre a América Latina e o Caribe (CEHAL) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
[1] Edward W. Said nasceu em Jerusalém em 1935. Era de família de árabes-cristão, foi educado no Cairo e depois em Nova York, onde foi professor de Literatura na Universidade de Columbia. Tornou-se um dos mais importantes críticos literários dos EUA publicou dezenas de artigos sobre a questão palestina. Morreu em 2003. IN: SAID, Edwar W. Orientalismo> o Oriente como invenção do Ocidente, São Paulo, CIA Das Letras, 2007, p. 523.
[2] Sobre o uso da noção de “arquivo do tempo” de Foucault sobre o orientalismo, ver Edward Said, “Orientalismo, O Oriente como Invenção do Ocidente.” São Paulo, CIA Das Letras, 2007, p. 187.
[3] Parte dos dados sobre a biografia de Sarmiento e sobre o contexto argentino foi extraída do ensaio de autoria de León Pomer sobre Sarmiento IN: POMER, Leon. (org). Sarmiento: Política. São Paulo: Ática, (coleção Grandes cientistas sociais), 1983.
[4] Ver: Apresentação da obra e da biografia de Sarmiento em: POMER, Leon. (org). Sarmiento: Política. São Paulo: Ática, (coleção Grandes cientistas sociais), 1983.
[AS1]Repete a palavra uma
