
Marcia Alves Dos Santos Cavalcante*
Fuente de la imagen: El sol de Morelia. (Foto: Cortesía | Fonoteca Nacional) (06/03/2023)
Resumo
O objetivo deste artigo é demonstrar como a obra literária Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, publicada em 1967, pela editora Sudamericana, em Buenos Aires, pode ser um objeto de análise historiográfica. Ao tratar de García Márquez, buscaremos também apontar a importância do movimento literário denominado Realismo Mágico, tido como a escola literária que melhor representa a literatura latino-americana e cujo representante é o próprio Márquez. Nesta breve análise, apontamos que este movimento literário pode ser considerado uma ferramenta de resistência contra o pensamento eurocêntrico vigente, fruto do processo colonizatório, e que pode ser caminho à um entendimento do pensamento decolonial.
Para isso, serão demonstrados argumentos teóricos que respaldem a análise até aqui desenvolvida, a partir de levantamentos sobre fatos históricos, por meio da leitura da obra de García Márquez, respaldado pela história cultural, pela qual abre-se a possibilidade para um diálogo entre a arte e a história.
Como exemplo da obra considerada a que melhor representa a América Latina, que emerge o percurso da história tão bem descrita por Gabo, o texto abre caminhos para se compreender ainda melhor os fatos históricos e a um autorreconhecimento do ser latino-americano.
Palavras-Chave: literatura; Gabriel García Márquez; Cem anos de solidão; História cultural; América Latina
Abstract
The objective of this article is to demonstrate how Gabriel García Márquez’s literary work One Hundred Years of Solitude, published in 1967 by Sudamericana Publishing House in Buenos Aires, can be the subject of historiographical analysis. In discussing García Márquez, we will also seek to highlight the importance of the literary movement known as Magical Realism, considered the literary school that best represents Latin American literature and whose representative is Márquez himself. In this brief analysis, we point out that this literary movement can be considered a tool of resistance to the prevailing Eurocentric thought, a fruit of the colonization process, and that it can be a path to understanding decolonial thought.
To this end, we will present theoretical arguments that support the analysis developed thus far, based on surveys of historical facts, through a reading of García Márquez’s work, supported by cultural history, which opens the possibility of a dialogue between art and history. As an example of the work considered the most representative of Latin America, which reveals the course of history so well described by Gabo, the text opens paths to an even deeper understanding of historical events and self-recognition of the Latin American being.
Keywords: Literature; Gabriel García Márquez; One Hundred Years of Solitude; Cultural History; Latin America
Cem anos de solidão: representação da América Latina
Que os textos literários e históricos têm em comum o uso da palavra como principal ferramenta de linguagem e registro, isso é conhecido. No entanto, o uso documental dos textos ficcionais como fonte para os estudos historiográficos é relativamente novo e desafiador. Por essa razão, propomos uma reflexão breve sobre o uso da literatura como ferramenta historiográfica no tema de pesquisa em desenvolvimento proposto: Cem anos de solidão: Macondo, a cidade fantástica como representação da América Latina e ferramenta para construção do pensamento decolonial, afim de contribuir para os estudos historiográficos da América Latina. Neste estudo utilize-se a literatura como objeto de análise para o levantamento de fatos históricos ocorridos na Colômbia contemporânea a Gabriel García Márquez e à sua produção literária objeto desta análise, sendo assim a literatura um registro do real e instrumento de apreensão histórico como metáfora epistemológica.
Sendo a literatura uma produção artística, e a arte resultado representação dos valores e costumes de uma cultura, cabe ao historiador captar do narrador a experiência dos fatos vividos (BENJAMIN, 1985) e com esta narrativa captar a realidade por meio de sua produção para interpretar os textos. Já o método é o de fazer uma fusão entre o texto e o contexto, ou seja, usar a linguagem para interpretar contextos, como representação de uma experiência histórica, na tentativa de se perceber como se apresentou uma dada realidade (AVELINO, 2012, in: LACAPRA, 1991).
O autor e sua obra
Gabriel García Márquez, nasceu em Aracataca, na Colômbia, em 06 de março de 1927, e faleceu em 17 de abril de 2014, na Cidade do México. Gabo, como é conhecido em sua terra natal, foi um jornalista, escritor, editor e ativista colombiano. Sua obra mais conhecida e comentada, dentre os mais de 30 títulos publicados pelo autor, é Cem anos de solidão, publicada em 1967, pela editora Sudamericana, em Buenos Aires, Argentina.
O livro conta a história de um povoado fictício chamado Macondo, que é de repente assolado pela peste da insônia. Enquanto as pessoas buscam pela cura, os sintomas pioram, o que faz com que elas passem a sofrer também de “uma amnésia coletiva”, chegando ao ponto de não se lembrarem sequer de seus nomes, dos nomes dos objetos a sua volta, e de sua própria identidade. No final a cura é trazida por um sábio, chamado Mequíades.
O que se pode apontar no decorrer da leitura da obra é que García Márquez mescla elementos ficcionais com fatos históricos vividos por toda a latino-américa, por meio da construção de suas alegorias. O que faz desta narrativa um objeto de estudo atual, como instrumento que pode levar o historiador a adentrar um mundo transcendente e ao mesmo tempo, refletir sobre os fatos ocorridos no processo de colonização da América Latina e suas consequências.
Sendo assim, Cem anos de solidão é considerada uma obra prima. A mesma rendeu ao autor reconhecimento internacional, como um embaixador da voz latino-americana para o mundo. García Márquez recebeu muitos prêmios, dentre eles o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982. E a obra em questão é a segunda obra mais importante de literatura hispânica, estando a sua frente apenas Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes. A obra de García Márquez simboliza o movimento literário latino-americano conhecido como Realismo Mágico, que, segundo Alejo Carpentier, trata-se de um patrimônio da América inteira (CARPENTIER, 2009, p.10).
Realismo Mágico: ferramenta de denúncia contra o eurocentrismo
O Realismo Mágico surge em um momento de diferentes crises de questionamento a uma lógica que teve início no processo de colonização, que subsume os valores originários das populações indígenas e afrodescendentes a um novo modo de vida, questionamentos esses reconhecidos como decolonização. Observa-se este questionamento nos diferentes autores que analisam os múltiplos da sociabilidade, desde o da religiosidade, por exemplo, até sobre o entendimento da dinâmica do desenvolvimento latino-americano.
“A América era um vasto império do Diabo, de redenção impossível e duvidosa, mas a fanática missão contra a heresia dos nativos se confundia com a febre que, nas hostes da conquista, era causada pelo brilho dos tesouros do Novo Mundo.” (GALEANO, 2010, p. 31)
Este processo colonizatório fez com que os povos latino-americanos deste período passassem por um processo de apagamento cultural, religioso e social, com isso essas populações tiveram sua identidade colocada em xeque e consequentemente inferiorizada, frente às mortes e aos castigos aos que se recusassem a aderir ao novo modo de vida, tendo a América como um grande negócio europeu. (GALEANO, 2015, p. 45)
A partir da leitura da obra, e como continuidade da análise, pretende-se observar o período e contexto entre os anos 1960 – 1970, que contempla os anos de auge do Realismo Mágico, de sua expansão e maior propagação. No entanto, a análise traçará um paralelo com momentos históricos do período colonial, ilustrando desse modo o contraponto proposto pelo autor.
Tendo o Realismo Mágico como uma das expressões mais fortes da literatura da América Latina. A partir da qual García Márquez cria alegorias em sua obra Cem anos de solidão, que representam a própria América Latina, materializada na obra pela cidade de Macondo: “[…] Eram ciganos novos. Homens e mulheres jovens que só conheciam a sua própria língua […]” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2002, p. 21), tem-se, por exemplo, um trecho em que o autor sugere semelhanças entre os ciganos, no momento da fundação de Macondo, e os povos latino-americanos no período da colonização.
Outro trecho muito interessante, que cabe exemplificar, é:
“[…] Era a peste da insônia […]. […] o esquecimento. Queria dizer que quando o doente se acostumava ao seu estado de vigília, começavam a apagar-se da sua memória as lembranças da infância, em seguida o nome e a noção das coisas, e por último a identidade das pessoas e ainda a consciência do próprio ser, até se afundar numa espécie de idiotice do passado.” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2002, pp. 47-48)
Aqui é possível levantar a hipótese de que a colonização, por meio da dominação do colonizador, o processo de anulação cultural, a construção de uma ideia de incapacidade de se autogovernar, fez com que os povos latino-americanos padecessem de uma “amnésia coletiva”, esquecendo-se da própria identidade enquanto nação.
A teorização sobre o Realismo Mágico a partir da segunda metade do século 20, ensejam rupturas com as normas artísticas e a estética de origem europeia, como o dadaísmo, surrealismo, cubismo, o que faz com que escritores latino-americanos passem a produzir seus textos segundo novas regras (FIGUEIRA, 2016). Isso aponta segundo o autor Lauro Figueira, [1], citando Ramón Xirau,[2] uma “crise no realismo”. Isso posto, o realismo mágico surge em um momento de diferentes crises de questionamento a uma lógica que teve início no processo de colonização, que subsume os valores originários das populações indígenas e afrodescendentes a um novo modo de vida, questionamentos esses reconhecidos como decolonização. Observa-se este questionamento nos diferentes autores que analisam os múltiplos da sociabilidade, desde o da religiosidade, por exemplo, até sobre o entendimento da dinâmica do desenvolvimento latino-americano.
“A América era um vasto império do Diabo, de redenção impossível e duvidosa, mas a fanática missão contra a heresia dos nativos se confundia com a febre que, nas hostes da conquista, era causada pelo brilho dos tesouros do Novo Mundo.” (GALEANO, 2010, p.31)
Nesse aspecto, o movimento do Realismo Mágico se apresenta como uma ferramenta de denúncia contra o eurocentrismo e de resistência ao assumir uma posição ideológica em defesa de tudo que havia sido perdido no processo de colonização: a terra, a identidade, as crenças, ou seja, este é um movimento literário que incorpora no real a magicidade. Desse modo, tem-se uma análise da função social da Literatura latino-americana que traz características do real em sua dimensão empírica, que representa a América Latina, trazendo dimensões do real contidas nas subjetividades e que se expressam pelos signos, símbolos componentes da cultura daquela sociedade, conforme Carpentier:
“[…] o maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou especialmente favorecedora das inadvertidas riquezas da realidade […].” (CARPENTIER, 2009, p. 9)
Desse modo a narrativa ultrapassa a barreira do que é real por meio de forças aleatórias e imanentes que também expressam aspectos da concretude social dado que, “o real maravilhoso se encontra em cada passo nas vidas de homens que inscreveram datas na história do Continente e deixaram nomes ainda lembrados”. (CARPENTIER, p. 10)
Uma literatura cujo objeto é o real maravilhoso que expressa os acontecimentos latino-americanos em suas múltiplas dimensões culturais do fazer-se histórico que, ainda segundo Carpentier, traduz-se em uma sensação do maravilhoso que pressupõe uma fé, uma fé coletiva. (CARPENTIER, p.9-p.10)
Foi no transcorrer dos anos 1930, segundo Iegelski (2021)[3], que a crítica considerava o surgimento de um novo na produção literária latino-americana em que os ficcionistas de diferentes países passaram a tratar em suas obras, com profundidade e amplitude, a herança colonial e a violência da realidade histórica e social do continente, trazendo temas como as revoluções, as disputas religiosas, a luta pela terra, incorporando nessa literatura a magicidade enquanto uma dimensão da resistência e que a obra de Garcia Márquez expressa muito bem.
No entanto, ao mencionarmos o Realismo Mágico não podemos deixar de expor ainda que de modo breve uma ideia de sua possível origem. Existem algumas explicações para a origem do termo, segundo Iegelski (2121, p. 3), em O reino deste mundo, Carpentier recriou acontecimentos extraordinários que, entre 1750 e 1830, precederam e seguiram à revolução haitiana e que a partir de memórias das populações pré-hispânicas, narraram a evolução e a luta ente as populações indígenas contra os invasores estrangeiros. Lauro Figueira também aponta uma possível origem no final da segunda década do século 20, quando os escritores latino-americanos passaram a propor uma nova poética após experiências com os surrealistas franceses e a esse novo estilo chamam de “realismo maravilhoso americano” (FIGUEIRA, 2000, p.23).
Para Maria Ramírez Ferreira[4], esta origem do termo Realismo Mágico ser europeia também é citada na produção do crítico literário alemão Franz Roh utiliza, que a associa igualmente para descrever um estilo de pintura que emerge em 1925. O que corrobora com Figueira que também aponta que o termo aparece pela primeira vez no livro de Franz Roth, intitulado Realismo mágico – post expressionismo. Mas Figueira vai além de Ferreira porque ele aponta que Roth fala sobre uma dialética em que vive o homem, e que não aparece somente na pintura pré-expressionista, o que abre a possibilidade de identificá-la na produção artística de forma geral (FIGUEIRA, 2000, p. 22).
Para se entender melhor este debate, buscando objetivar o conceito, será necessário mencionar, ainda que preliminarmente, a existência de uma distinção entre os termos “realismo mágico” e “realismo maravilhoso”. Os autores que trabalham com essa distinção, apontam que a expressão “realismo mágico” explica uma estética de uma “nova visão” da realidade (Irlemar Champi, in: FIGUEIRA, 2000, p. 22). Outros entendem que o realismo mágico é uma estética narrativa que antecede o realismo maravilhoso, segundo a leitura feita por Jorge Quiroga do texto de Alejo Carpentier (1984) (in: idem, p. 23). Já o realismo maravilhoso demonstra uma nova expressão da poética latino-americana, apresentando-se o termo maravilhoso como um complemento ao realismo mágico (FIGUEIRA, 2000, p. 24). Para Champi, ainda segundo Figueira, a acepção da palavra “maravilha”, que vem do latim mirabilia, com sentido de “coisas admiráveis”, em contraposição à naturalia, coisas comuns. Assim, para Champi, o maravilhoso preserva algo de humano e a escolha desse termo se dá por uma perspectiva estritamente literária. Já o termo mágico, segundo ela, pertence a uma outra esfera cultural, a uma esfera que pretende controlar o que é sobrenatural.[5] (FIGUEIRA, 2000, p. 25)
Já para o escritor e crítico cubano, Leonardo Padura, também citado por Figueira, o realismo maravilhoso complementa a realidade tematizada pelo realismo mágico. Tem-se que a fé, tida como um dos elementos para suscitar o maravilhoso causa uma certa confusão nas características do realismo maravilhoso com o realismo mágico quanto à identificação da prática estética de cada um, pois acreditar nos acontecimentos misteriosos se constitui como essência para a visão mágico-realista, segundo Padura, citado por Figueira. (FIGUEIRA, 2000, p. 25)
No entanto, consideramos as concepções sobre realismo mágico desenvolvida pelos principais expoentes latino-americanos denotam um outro conceito, pois incorpora à racionalidade humana dimensões da percepção que a lógica cartesiana europeia separa quando desconsidera que compõe essa racionalidade a intuição, as percepções extra-sensoriais e a captação de energias que circundam na sociabilidade humana. Trata-se da objetivação da identidade latino-americana e suas múltiplas dimensões e conexões que compõem sua dinâmica histórica. Esta dimensão do Realismo Mágico se torna mais clara à medida que analisamos os conceitos de sobre a decolonialidade.
Tem-se que, até meados do século 20, os escritores latinos baseavam-se nas tendências europeias para criar suas produções. Mas aos poucos, a necessidade de um distanciamento do paradigma europeu, tendo as marcas históricas deixadas pelo processo colonizatório entre os anos de 1492 e 1519 na América Latina, que se formou a partir do fomento de um pensamento e voz própria dadas aos povos latinos se fizesse presente em suas criações. Assim, o movimento Realismo Mágico passa a ser uma ferramenta de resistência para demonstrar este mundo real e simbólico apagado pelo processo colonizatório:
“Os reis católicos da Espanha decidiram financiar a aventura do acesso direto às fontes, para livrar-se da onerosa cadeia de intermediários de revendedores que monopolizavam o comércio das especiarias e das plantas tropicais […]» (GALEANO, 2010, p.30) […]
«A América era um vasto império do Diabo, de redenção impossível ou duvidosa, mas a fantástica missão contra a heresia dos nativos se confundia com a febre que, nas hostes da conquista, era causada pelo brilho dos tesouros do Novo Mundo.“ (GALEANO, 2010, p.31)
A literatura como documento histórico
A literatura, assim como a história, são produções humanas, que a partir da linguagem revelam fatos, ideias, necessidades e experiências. Por essa razão, ao confrontar o tema proposto como objeto de pesquisa abre a possibilidade para que se possa estabelecer um diálogo entre a narrativa de Gabriel García Márquez, a teoria de Sandra Jatahy Pesavento, sobre História Cultural, e o pensamento de Nestor Canclini, sobre Culturas Híbridas, pois temos na obra de Gabo um exemplo de uma obra de ficção, cujos registros de uns momentos históricos e culturais que podem ser utilizados como uma fonte historiográfica da América Latina.
Ao iniciar a leitura da obra de Pesavento, temos uma explanação sobre a vertente francesa da história dos Analles, que, segundo a autora, vem como um impulso de renovação e ruptura dos paradigmas e posturas historiográficas presentes nas últimas décadas do século 20. O que não representa uma ruptura completa com as matrizes originais da historiografia, mas que resulta na abertura de uma nova corrente historiográfica a que chamamos de História Cultural. (PESAVENTO, 2014, p. 10)
Esta nova corrente historiográfica trata de pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo. Ou seja, a partir de uma concretude social, repudiara-se a análise classista e houve a busca de uma alternativa ao Marxismo, que explicava a História a partir dos acontecimentos e que tinha a cultura como mero reflexo da infraestrutura, ou como manifestação superior do espírito humano e, portanto, como domínio das elites, enquanto que nesta nova proposta, a História também pode ser explicada a partir de uma realidade social, relegando a cultura a uma terceira instância, como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo (PESAVENTO, 2014, p. 13,14,15).
No capítulo II, ainda da obra de Pesavento, um aspecto chama a atenção, quando a autora traz o que ela denomina “agente sem rosto”, trazido por Michelet, e que seria a representação do povo, das massas, estes como personagem da História e como protagonista dos acontecimentos, além de resgatar os sentimentos e as sensibilidades dessas pessoas (PESAVENTO, p. 19). Sobre este aspecto, fazendo uma relação com um dos grupos de personagens de Gabriel García Márquez, os ciganos formam um núcleo de personagens protagonistas daquele momento histórico colombiano de “agentes sem rosto”, representando um aspecto cultural a ser analisado na história daquele local, e é isso o que a Literatura nos permite, tonando-se uma fonte em potencial.
Pode-se afirmar, neste sentido, que a História Cultural permite realizar a história daqueles que não tinham história (PESAVENTO, 2014). E que segundo Paul Ricceur, o texto do historiador tem, pois, uma pretensão à verdade e refere-se a um passado real, mas toda estratégia narrativa de refigurar essa temporalidade já transcorrida envolve representação, que, segundo ele, a ficção é quase histórica, assim como a História é quase uma ficção (PESAVENTO, 2014, p. 34-35 e 37).
Para citar mais um aspecto, uma outra corrente historiográfica, a da micro-história, que é apresentada pela autora a partir de Carlo Ginzburg. Por meio desta vertente, é possível reduzir a escala de análise, o que permite que, a partir do fragmento, se consiga obter um aspecto mais amplo de possibilidades de interpretação (PESAVENTO,2014). Assim, tendo a literatura latino-americana como objeto de análise pela vertente da História Cultural, existe a possibilidade da análise do que seria considerado sobrenatural, onde o microcosmo do cotidiano latino-americano e das pequenas ações revelam individualidades pessoais, atitudes, hábitos valores, costumes, ou seja, a dinâmica da vida, uma identidade.
E para estabelecer mais diálogo, o autor Nestor García Canclini, propõe que a questão do híbrido, dentro do desenvolvimento histórico, cuja função mais importante é a de descrever processos interétnicos e de descolonização (CANCLINI, 2003, p. XVIII).
Um ponto bastante interessante que deve ser levado em conta é que a hibridação não é sinônimo de fusões sem contradições, mas, sim, que essas contradições podem ajudar a dar conta de formas particulares de conflito geradas na interculturalidade (CANCLINI, 2003). O que nos leva a refletir sobre uma transmutação cultural, ou seja, ressignificando o espaço das práticas coletivas das culturas dos povos originários.
Dessa maneira, ao se voltar ao tema da pesquisa, há que se pensar no processo de colonização pelo qual a América Latina passou. Um processo que incluiu uma imposição cultural. Uma vez que, segundo Pesavento, a História Cultural nos permite que a história seja explicada a partir de uma realidade cultural, com Canclini isso se materializa quando ele afirma que a hibridação funde estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas estruturas e novas práticas (CANCLINI, 2003), ocorrendo em muitos momentos de modo não planejado. Assim, ao tocarmos na obra de García Márquez, a partir do momento histórico que sua obra apresenta, é possível detectar uma resistência dos colonizadores em de fundir com as culturas locais existentes, tendo isso ocorrido por meio de um processo violento contra os povos latino-americanos.
Sendo assim, estudar os processos culturais é mais do que levar-nos a afirmar identidades autossuficientes, serve para conhecer formas e entender como se produzem as hibridações, que em detrimento de uma “modernidade” não se pode perder a identidade, segundo Canclini.
Dessa maneira, ao tratar o tema da hibridação, é possível estabelecer uma conexão com o texto de Pesavento no que tange a História Cultural, pois Canclini traz a ideia de que com a multiculturalidade é possível evitar a segregação e converter em interculturalidade (CANCLINI, 2003, p. XXVII), pois as políticas de hibridação propõem trabalhar democraticamente com as divergências, para que a história não se reduza a guerras entre culturas, mas que seja um convite para entender as mudanças pelas quais as sociedades passam.
Desse modo, García Márquez compõe uma narrativa “histórico fantástica” ou “literária real” (se assim podemos chamar), pois se utiliza de dados da própria história para problematizá-la por meio de Macondo e de seus habitantes, que encontram o paralelo perfeito com o substrato cultural o inerente à realidade latino-americana, e essa é a questão do real relatado segundo Pereira[6]. Uma realidade historiográfica que a Europa não consegue analisar, e que faz com que esta dinâmica seja vista de forma diminuída, como bruxaria:
“A América de Voltaire, habitada por índios preguiçosos e estúpidos, tinha porcos com o umbigo às costas e leões calvos e covardes. Bacon, De Maistre, Montesquieu, Hume e Bodin negaram-se a reconhecer “homens degradados” do Novo Novo mundo como seus semelhantes. Hegel falou da impotência física e espiritual da América e que os indígenas tinham perecido ao receber o sopro da Europa.” (GALEANO, p. 66)
Tem-se, portanto que Cem anos de solidão deixa de ser somente uma narrativa ficcional, mas converte-se em um texto reflexivo, que, segundo PESAVENTO4, torna-se uma fonte em potencial aos estudos históricos.
“É ainda nesta corrente que se insere a discussão sobre a ficção na História e do potencial das fontes como documento de uma época, que permite, ou não, estabelecer verdades sobre o passado. Por outro lado, é ainda por esse campo que se coloca o estatuto específico da narrativa histórica, onde ela se aproxima e se afasta do discurso literário.” (PESAVENTO, 2014, 71)
Por essa razão, acreditamos que a obra Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, seja um objeto sólido de análise e de como a Literatura pode ser uma potente fonte historiográfica. Como exemplo de uma obra que melhor representa a América Latina, que emerge o percurso da história tão bem descrita por Gabo, o texto abre caminhos para se compreender ainda melhor os fatos históricos e leva a um autorreconhecimento de ser latino-americano.
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Notas
* Mestranda em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo– PUC-SP,
sob a orientação da Dra. Professora Vera Lúcia Vieira. Formada em Letras – Licenciatura Português e Espanhol pela PUC-SP. Atualmente bolsista CAPES.
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