
Maria Goreti Juvencio Sobrinho*
e Ivan Cotrim**
Ilustración: Trabajo digital de Carolina Crisorio
Resumo
O artigo traz à tona as polêmicas entre dois grandes expoentes do pensamento latino-americano, Ruy Mauro Marini e Fernando Henrique Cardoso, travadas em torno da Diáletica da dependência, ao longo da década de 1970. Mostra que, embora utilizem o conceito de dependência, ambos os autores analisam a realidade latino-americana, e brasileira em particular, sob perspectivas de classe distintas. Enquanto Cardoso empreende uma crítica liberal/politicista à ditadura militar, enaltecendo a modernização da perspectiva do capital e defendendo uma democratização estritamente no âmbito das formas político-institucionais, Marini opõe-se à ditadura militar com base na perspectiva do trabalho.
Palavras-chave: Marini, Cardoso, dependência, superexploração da força de trabalho
Abstract
The Controversies between Ruy Mauro Marini and Fernando Henrique Cardoso
This article brings to light the controversies between two great exponents of Latin American thought, Ruy Mauro Marini and Fernando Henrique Cardoso, which took place over the Dialectic of Dependency during the 1970s. It shows that, although they use the concept of dependency, both authors analyze the Latin American reality, and Brazilian reality in particular, from different class perspectives. While Cardoso undertakes a liberal/politician critique of the military dictatorship, praising the modernization of the capitalist perspective and defending a democratization strictly within the scope of political-institutional forms, Marini opposes the military dictatorship based on the perspective of labor.
Keywords: Marini, Cardoso, dependency, overexploitation of the labor force
As polêmicas entre Ruy Mauro Marini e Fernando Henrique Cardoso [1]
O presente trabalho discute as teses de Ruy Mauro Marini e Fernando Henrique Cardoso, cujas polêmicas, ao longo da década de 1970, lançaram luzes sobre a forma de acumulação do capital no Brasil. Em Dialética da Dependência, Marini demarca dois traços distintivos do capitalismo latino-americano: a sua subordinação constitutiva e a superexploração da força de trabalho, que deriva desta, ambos determinados pelo processo de reprodução material particular e inseparável dos países centrais. Ao analisar as funções que as economias dependentes cumprem na divisão internacional do trabalho e as determinações do intercâmbio desigual e da transferência de valor, a favor das economias centrais, Marini constata que o mecanismo da superexploração da força de trabalho foi posto em prática pelas economias dependentes para compensar a parcela de sua mais-valia abocanhada pelos países centrais. A obra em tela, publicada em 1973, foi objeto da crítica de Fernando Henrique Cardoso, que deu início à polêmica entre os dois autores. Estas serão discutidas na segunda parte deste artigo, que principia destacando a análise de Marini[2].
Parte I
Marini busca elucidar a maneira pela qual a lei geral da acumulação de capital incide na economia dependente/subordinada, para a qual se coloca a incontornável questão: qual é a “forma como o trabalhador é explorado e, portanto, a forma como se dá o processo de acumulação de capital” (MARINI, 1972)? A resposta não é senão a superexploração da força de trabalho. Essa se expressa pelo pagamento da força de trabalho abaixo do valor real, e se vale de três mecanismos, que podem ser utilizados de forma isolada ou combinada: ampliação da jornada de trabalho, aumento da intensidade do trabalho e redução salarial. Nos dois primeiros mecanismos é imposto ao trabalhador um desgaste prematuro de sua força de trabalho, sem uma remuneração correspondente a esse desgaste[3]. No terceiro caso, o trabalhador é impedido, pela redução salarial, de consumir o necessário à reposição de sua força de trabalho em condições normais (MARINI, 2000a)[4].
Ressalte-se que a industrialização brasileira, nos seus momentos iniciais, produz bens que entram de modo muito restrito no consumo da classe trabalhadora, logo, as condições de salários desta não contavam para a produção daquela. Isso ocorre em dois sentidos, conforme Marini. Primeiro, porque “o valor das manufaturas não determina o valor da força de trabalho”, por conseguinte, a desvalorização daquelas não influencia a taxa de mais-valia, de modo que o industrial não se vê impelido a aumentar a produtividade do trabalho, mas procura aumentar a massa de mais-valia por meio da superexploração da força de trabalho (intensiva e extensiva, assim como pela redução salarial), agora, realimentada pelo excedente de mão de obra produzido pela crise agroexportadora. Em segundo lugar, na medida em que a evolução da oferta de mercadorias ocorre às custas do poder de compra dos trabalhadores, não se coloca para o “capitalista o problema na esfera da circulação”, já que o trabalhador conta apenas como produtor não como consumidor (MARINI, 2000a, p. 142).
A superexploração será intensificada com o avanço da industrialização brasileira, a partir da segunda metade da década de 1950, na quadra de acirramento do imperialismo e sob uma nova divisão internacional do trabalho, portanto, submetida aos interesses do capital produtivo e financeiro internacional. Nestas condições, e sem ter desenvolvido ou completado o setor de bens de produção, que, em parte, serão importados dos países centrais, a expansão industrial ocorre por meio do setor de bens suntuários e dos insumos e bens de capitais vinculados àqueles, aprofundando assim sua subordinação e, pois, a superexploração do trabalho. Na medida em que essa expansão não prioriza os setores produtores dos meios de subsistência da classe trabalhadora, mas os setores suntuários, que só podem ser consumidos pelas esferas altas da circulação (consumo de mais-valia não acumulada e dos setores da classe média, cuja renda deriva daquela e da compressão salarial da classe trabalhadora), ela não somente não colabora para a redução do valor da força de trabalho, por meio da redução dos custos de sua reprodução, como se sustenta no rebaixamento do nível de reprodução da força de trabalho, consolida, assim, um aparato produtivo divorciado das necessidades de consumo das massas.
Conforme os investimentos vão se direcionando aos setores produtores de bens suntuários e as inovações tecnológicas vão se concentrando nestes e nos setores de bens de capital que os atendem, e não nos setores vinculados à produção de bens de subsistência da classe trabalhadora, o que provoca a hipertrofia daqueles, vai se obstruindo, na economia dependente, sobretudo pela prevalência da superexploração e da mais-valia extraordinária, a emergência da forma de extração do valor pela via relativa, como forma dominante na relação capital e trabalho (MARINI, 2000a, p165). A mais-valia extraordinária, que é “o fato por excelência” pelo qual o capitalista individual se lança ao aumento de produtividade ou o impele ao “progresso técnico” (MARINI, 1979a), assume um caráter mais exacerbado na economia dependente/subordinada, que sofre transferências de valores, quer nas suas relações com o mercado mundial, quer no âmbito interno, no qual o capital monopólico também abocanha mais-valia dos setores com baixa composição orgânica.
Marini destaca que a mais-valia extraordinária “não modifica o grau de exploração do trabalho na economia ou no ramo considerado, isto é, não incide na cota de mais-valia”, ela apenas “altera a repartição geral da mais-valia entre os diversos capitalistas, ao traduzir-se em lucro extraordinário” (MARINI, 2000a, p. 114). Caso a nova taxa de produtividade for adotada pelas demais empresas do ramo, seu efeito será a redução do valor social do produto proporcional ao aumento da produtividade, isto é, elimina-se a diferença entre o valor individual das mercadorias e seu valor social. Neste caso, a mais-valia extraordinária individual ou intrasetorial desaparece (não há incremento da mais-valia, mas sua redução). Porém, se isso ocorrer no setor IIb[5], isto é, se o aumento de produtividade acima da média social se generalizar nos ramos produtores de bens suntuários também não será alterado o grau de exploração do trabalho no conjunto da economia, mas será modificada a distribuição da mais-valia, dada a concentração da mais-valia extraordinária no referido setor. Para que ocorra a extração do mais-valor pela via relativa é necessário que o aumento da força produtiva incida sobre os bens necessários à reprodução da força de trabalho. O aumento de produtividade do trabalho somente pode afetar, assim, o conjunto da economia, isto é, modificar seu grau de exploração (alterar a relação básica de distribuição entre tempo necessário e tempo excedente) se ele incidir nos ramos produtores dos meios de subsistência (no subsetor IIa) – o que inclui o setor de bens de capital necessários para a produção daqueles -, isto é, nos ramos que determinam o valor da força de trabalho, alterando, pela redução do valor desta, a proporção, favorável ao capital, entre os dois tempos de trabalho: trabalho necessário e trabalho excedente, generalizando, portanto, a mudança na taxa de mais-valia no conjunto da economia. Logo, o aumento da força produtiva do trabalho[6] não é sinônimo de mais-valia relativa, aquele é condição para essa, mas não suficiente (MARINI, 1979b; 2000a).
Se a indústria brasileira acabou se consolidando por meio da expansão do setor de bens suntuários – que não fazem parte do consumo da classe trabalhadora, não determinam, pois, o valor da sua força de trabalho – o aumento de produtividade do trabalho induzido pelas inovações técnicas desses ramos “não pôde traduzir-se em maiores lucros por meio da elevação da taxa de mais-valia, mas tão somente mediante o aumento da massa de valor realizado” (MARINI, 2000a, p.148). A introdução de inovações tecnológicas na economia dependente provoca, de um lado, a ampliação do exército de reserva, de outro, uma grande heterogeneidade tecnológica (distintos níveis de composição orgânica dos capitais), o que permite aos setores monopólicos se apropriarem de uma mais-valia extraordinária, enquanto os setores de baixa composição orgânica lançam mão da superexploração da força de trabalho[7] para compensar sua perda de mais-valia. Portanto, o progresso técnico na economia dependente, “baseada na maior exploração dos trabalhadores”, permitiu ao capitalista “intensificar o ritmo de trabalho do operário, elevar a sua produtividade e, simultaneamente, manter a tendência a remunerá-lo em proporção inferior ao seu valor real” (MARINI, 2000a, p.147).
A partir da ditadura militar, as contradições e limites do capitalismo brasileiro foram intensificados, com o aprofundamento de sua subordinação ao imperialismo. Em conformidade com o eixo de acumulação que acabou prevalecendo (baseado na superexploração), em todos os setores da economia, a “ditadura do grande capital” – que de chofre beneficiou as grandes empresas, nacionais e estrangeiras (de bens intermediários, de consumo durável e de equipamentos destinados sobretudo a esses, cujos investimentos foram superiores aos direcionados para as pequenas e médias indústrias, vinculadas, em geral, à produção de bens de subsistência) -, ampliou as políticas de atração para os investimentos externos e facilitou a remessa de lucros, ao mesmo tempo em que excluiu o segmento da classe trabalhadora, que fora relativamente contemplado pelo estado no pré-64, o que exigiu a institucionalização e a intensificação da superexploração da força de trabalho: conter pela força o movimento reivindicativo das massas, determinar a fixação do reajuste salarial e substituir a estabilidade no emprego pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que ampliou a rotatividade do emprego e, pois, colaborou para a fixação do salário abaixo do seu real valor[8].
Essa forma de acumulação, baseada na superexploração da força de trabalho, gera limites para a acumulação ampliada do capital, cria, pois, graves problemas de realização, uma vez que a ampliação da composição orgânica do capital, facultada, em especial, pelo aumento de produtividade do setor suntuário, esbarra na capacidade interna de consumo. A grande indústria choca-se, assim, com a estreiteza do mercado interno que ela mesma acentua[9].
Tais constrangimentos (que derivam da contradição entre produção e realização, produção e consumo…) levarão, por exemplo, à crise do capitalismo brasileiro, que eclode com o final do chamado milagre. Essa crise de acumulação é o pano de fundo do texto que Marini elabora em 1979b, Plusvalía extraordinaria y acumulación de capital, que é considerado pelo autor como complemento de Dialética da dependência[10]. No texto de 1979b, Marini critica algumas interpretações[11] que também se debruçam sobre o padrão de acumulação, o desequilíbrio intersetorial e a crise da economia brasileira.
Marini explica a estrutura produtiva do capitalismo brasileiro, que chegara aquela fase exibindo o notório desequilíbrio intersetorial, expresso pela hipertrofia do setor IIb (ramos suntuários), trazendo à tona não apenas o controle do capital monopólico nesse setor, mas, sobretudo, as razões de fundo que tornam esse setor promissor às inversões de capital. Para tanto, discute, primeiramente, as características próprias desse setor na economia capitalista, ressaltando que, “para Marx, o subsetor de produção específico (IIb) tem seus próprios problemas de produção e realização, participa dinamicamente da reprodução, tanto pela acumulação que aí se realiza, sob a forma c + v, quanto pela circulação de mercadorias que ela engendra, o que implica a circulação da mais-valia ali produzida”. A primeira especificidade refere-se à maior elasticidade de sua demanda, uma vez que ela tem origem na mais-valia não acumulada, de modo que “quanto mais a mais-valia aumenta na economia, maior a elasticidade dessa demanda”. Tanto em decorrência da mais-valia ampliada no próprio setor quanto pelos demais ocorrerá uma demanda maior pelos produtos de IIb. Por conseguinte, “a possibilidade de que a mais-valia extraordinária de IIb se traduza em lucro extraordinário não é limitada em princípio pelo mercado, mas apenas pela competição entre os capitais e sua emigração de ramo para ramo”[12]. Dessa forma, a explicação para o lucro extraordinário do setor IIb não deve ser buscada, como pensam alguns autores, na estrutura monopólica, que pode existir também nos demais setores, mas “na própria dinâmica do mercado” (MARINI, 1979b).
Outra especificidade do setor IIb é que ele “exerce um efeito depressivo sobre a taxa geral de lucro, que é rigorosamente a contrapartida do lucro extraordinário que nele ocorre”, já que a transferência dos aumentos de produtividade para os preços ocorre nele de forma mais lenta que nos setores I e IIa, o que implica uma “transferência intersetorial de mais-valia, via preços, que vai além do que corresponderia estritamente os mecanismos de nivelamento da taxa de lucro e que os violam”, consequentemente “a massa de lucro cai para I e IIa (…) e empurra para baixo sua participação nos lucros”[13] (MARINI, 1979b).
Segundo Marini, essas especificidades do setor IIb são acentuadas na economia dependente, cujas condições são ainda mais favoráveis ao referido setor. Dada a prevalência da superexploração da força de trabalho e ante o setor IIa, “que não oferece um estímulo significativo ao aumento da produtividade”, os investimentos e aumentos de produtividade são canalizados para o setor IIb (ramos suntuários), e não para os setores produtores dos meios de subsistência. De sorte que “São os aumentos de produtividade não canalizados nessa direção que, ao influenciar a esfera de circulação, levam ao desequilíbrio setorial”, com a hipertrofia do setor IIb “e dos ramos que para ele produzem” (MARINI, 1979b). Ressalte-se que são as condições de mercado da economia dependente que permitem que o aumento de produtividade do setor IIb seja mais facilmente traduzido em lucros extraordinários, já que a produtividade média dos demais setores é baixa. O escoamento de mais-valia para o setor IIb e as diferenças de composição orgânica entre IIb e IIa, “enviesam toda a estrutura produtiva” (a expansão desproporcional do setor IIb em relação aos demais setores, causando a hipertrofia do primeiro, e subordinação do setor I ao setor IIb e não ao setor IIa), o que se traduz, segundo Marini, “no plano da circulação, na crescente diferenciação entre sua esfera superior e sua esfera inferior, ou seja, aquela que corresponde ao consumo de mais-valia e aquela que corresponde ao consumo de salários. Mais uma vez, se expressa como um problema de realização o que só se compreende à luz dos mecanismos de produção” (MARINI, 1979b).
Na medida em que os investimentos, em particular os estrangeiros, tendem para este setor, sua composição orgânica “aumenta em ritmo mais acelerado do que nos demais, inclinando a seu favor o mecanismo de nivelamento da taxa de lucro”. De forma que “a drenagem da mais-valia, que resulta do nivelamento dos lucros em um setor com alta composição orgânica, e a que deriva do lucro extraordinário”, que, por sua vez, diz respeito às condições de mercado, “deprimem a taxa de lucro nos demais setores”, exceto nos setores produtores de bens de capital que atendem o setor IIb. Nesse sentido, e somente nesse sentido, ressalta Marini, é que a hipertrofia do setor IIb corresponde à atrofia nos setores I e IIa. Nesse nível de análise se explicita, então, o fenômeno do desequilíbrio setorial ou da hipertrofia do setor IIb, que apenas pode ser explicado, partindo “das condições de produção e circulação da mais-valia”, não da circulação, já que, afora determinadas circunstâncias, os problemas da circulação devem ser entendidos à luz do que ocorreu na produção. Desse modo, “Como em qualquer outro campo observado, aqui também a economia dependente, baseada na superexploração do trabalho, sofre de forma ampliada com as leis gerais do regime capitalista de produção” (MARINI, 1979b).
Os problemas de circulação, determinados pela estrutura e dinâmica produtiva, vão se manifestar nos limites do mercado de consumo interno da economia dependente. De um lado, a ausência de estímulo ao aumento de produtividade nos setores de bens-salários, cujas taxas de crescimento são bem inferiores às exibidas pelos ramos suntuários, mantém elevado o valor de tais bens, sem que seja necessário o aumento salarial compatível, já que esse não é o segmento que lidera a acumulação de capital, que se vale da superexploração da força de trabalho, que, por sua vez, restringe o consumo popular. Disso resulta que os ramos de bens-salários tendem à estagnação ou à expansão com base no mercado externo. Por outro, na medida em que o dinamismo do mercado interno é dado pela demanda dos bens suntuários, que está restrita aos capitalistas e camadas médias altas e não pode se estender aos trabalhadores, cuja capacidade de consumo é obstruída pela superexploração, a expansão da produção choca-se com um restrito mercado interno, que não pode ser ampliado, inclusive, pelo fato de que a remessa ao exterior de parte da mais-valia não acumulada, pelas filiais estrangeiras, impede que esta seja transferida ao consumo suntuário local[14]. De sorte que a oposição entre produção e mercado interno força a indústria a buscar a realização de parte de sua mercadoria no mercado exterior (MARINI, 1979a; 2000b).
Segundo Marini, a resposta do capital, da burguesia, à crescente oposição entre produção e mercado interno, da economia dependente, estaria “configurando um novo modelo de organização econômica, social e política”, cuja forma “mais avançada” se expressaria no “subimperialismo brasileiro” (1971). Uma das respostas para contornar esta oposição consiste em operar na esfera da circulação, para fomentar o mercado interno para a indústria, por meio da “política salarial e de crédito, e usando a mola da inflação” (MARINI, 1972), que transfere recursos das camadas inferiores para a classe média e superior, o que aumenta o consumo suntuoso dessas classes. Porém, esse mecanismo tem limites. Aquela camada privilegiada de consumo não pode crescer indefinidamente, uma vez que ela “pressupõe uma força de trabalho altamente explorada e desapropriada. Não se pode permitir que setores dessa força de trabalho participem da ‘sociedade de consumo’ sem desencadear um processo de reivindicação em toda a massa trabalhadora, o que colocaria em risco a acumulação baseada na superexploração do trabalho” (MARINI, 1972). O segundo mecanismo empregado pelo capital é criar um mercado por meio da atuação do estado – aumentar a demanda estatal para a indústria, obras de infraestrutura e indústria bélica. Contudo, ainda que esse mecanismo abra possibilidades no curto prazo ele também tem limites, visto que a acumulação de capital não pode se sustentar apenas no consumo estatal, portanto “É necessário que haja um campo de acumulação de capital real e um campo real de circulação de mercadorias” (1972). O terceiro é o esforço exportador não apenas de alimentos e matérias primas, mas também de manufaturados, isto é, daquela parcela da “produção industrial que não pode ser realizada totalmente no mercado interno e que precisa crescer constantemente em decorrência da mesma acumulação de capital” (1972). Face aos limites dos anteriores, este terceiro mecanismo se torna o mais importante, ao menos a longo prazo, para manter a taxa de acumulação, que implica, ademais, intensificar a superexploração da força de trabalho para enfrentar a concorrência no mercado internacional. De forma que, com o reforço de sua aliança com o latifúndio (renúncia à reforma agrária) e de sua integração ao imperialismo (2000c), especialmente a partir da ditadura militar, a burguesia brasileira não pôde contar com a ampliação do mercado interno para seus produtos. Resta-lhe, então, a alternativa de expandir-se para o exterior: o subimperialismo.
A superexploração, presente na economia exportadora e reproduzida com o avanço da industrialização, determina, assim, os limites para a realização do valor na economia dependente, dado que a capacidade de produção é sempre superior ao que o trabalhador pode consumir, “razão pela qual a economia não pode desenvolver a produção interna além de certo limite sem enfrentar problemas de realização” (MARINI, 1972). Uma das tentativas para contornar esses limites é, como mencionado, o “subimperialismo”. Não vem ao caso adentrar no caráter polêmico ou inadequado dessa noção. Não obstante, “subimperialismo” parece se configurar, na visão do próprio Marini, como uma saída que aprofunda a dependência e subordinação do capitalismo brasileiro. Para o autor, a burguesia do capitalismo dependente sempre busca resolver as contradições e problemas que lhes são próprios aprofundando a dependência, se submetendo ainda mais ao capital externo, o que intensifica a superexploração da força de trabalho. Apenas dessa forma é “possível pensar em manter seu processo de acumulação de capital”, o que significa que “a acumulação de capital nos países dependentes acarreta necessariamente a desnacionalização do país dependente, acarreta necessariamente a impossibilidade de desenvolvimento capitalista autônomo” (MARINI, 1972).
Segundo Marini, o ciclo do capital na economia dependente/subordinada tem características próprias, sempre deslindadas pelo autor em comparação com o desenvolvimento do capitalismo nos países centrais. Uma delas é o papel central assumido pelo capital externo nas três fases do ciclo. Afora o movimento pelo qual a economia dependente vai repondo e aprofundando sua subordinação ao capital externo, inclusive na fase denominada por Marini de subimperialismo, vale destacar mais alguns aspectos diretamente relacionados a superexploração, que, inclusive, explicitam as raízes da crise de acumulação no Brasil.
Enquanto nos países centrais a industrialização começou pela ampliação do mercado interno, pela expansão dos setores produtores de bens operários, o que facultou a internalização dos dois momentos do ciclo do capital: produção e circulação, a industrialização brasileira, como mencionado, se desenvolveu sem contar com o consumo da classe trabalhadora, e sustentada na superexploração, o que exacerba e torna mais violenta a contradição, inerente à produção capitalista, entre produção e circulação, produção e consumo, produção e realização. Essa contradição já se verificara na economia exportadora, que não dependia do mercado interno, já que sua produção era destinada ao consumo das trabalhadoras e trabalhadores e da classe que vive de mais-valia nos países centrais. De sorte que a classe trabalhadora brasileira jamais contou como consumidora, mas apenas como produtora, como força a ser explorada. É esse divórcio que cria, segundo Marini, as condições para o desenvolvimento e manutenção da superexploração do trabalho. Enquanto nos países centrais, o consumo dos trabalhadores é fundamental na fase da circulação, para que o capital reassuma sua forma dinheiro e, assim, retorne à fase da produção, na economia dependente, dado o caráter mais exacerbado daquela contradição, a oposição entre capital e trabalho não pode de forma alguma ser minorada. A exploração da força de trabalho no Brasil não encontra, pois, limites “na necessidade de realizar o produto (…) Por conseguinte, o caráter que assume o ciclo do capital numa economia desse tipo não coloca nenhuma trava à exploração do trabalhador, ao contrário, a leva a configurar-se como uma superexploração”. Assim, enquanto nos países centrais, a acumulação está baseada no aumento da capacidade produtiva do trabalho, nas economias dependentes o eixo da acumulação não está baseado diretamente no aumento da força produtiva, mas na superexploração da força de trabalho. Portanto, ao contrário do que pensam alguns autores, que consideram que a superexploração da força de trabalho seja uma forma de exploração transitória do capitalismo dependente que possa “dar lugar a outra em que a introdução de métodos voltados ao aumento da produtividade permite a generalização da mais-valia relativa”, Marini sustenta: “O recurso à produtividade do trabalho, como método de extração de mais-valia, não é algo que ainda está por vir, quando se esgota a possibilidade de extraí-la com base na superexploração”, precisamente porque “já é amplamente utilizada que a superexploração no Brasil se agravou” (1979b). Argumentando, ainda, na linha do que já fora anunciado por Marx: as formas superiores de acumulação capitalista não implicam na eliminação de suas formas inferiores, ademais, diante de uma ampla disponibilidade de mão de obra, o capital não titubeia em lançar mão de formas “pretéritas” de exploração do trabalho, de extração de excedente. O aumento da força produtiva do trabalho na economia dependente, que é baseada na superexploração da força de trabalho, tem como efeito justamente a intensificação desta. A ampliação do exército industrial de reserva “viabiliza a pressão do capital sobre as condições de trabalho e remuneração dos trabalhadores. O fato de que, junto a isso, a burguesia recorra ao estado para quebrar a resistência do trabalhador e tornar mais efetiva a ação do exército de reserva (eliminando, por exemplo, a estabilidade do emprego, fixando tetos salariais, eliminação do direito de greve etc.) não modifica o problema, em sua essência” (1979b). Por conseguinte, a superação da superexploração da força de trabalho não depende da introdução de modernos métodos que aumentem a produtividade do trabalho, mas do aniquilamento da economia dependente e, pois, do capitalismo, pelos trabalhadores.
Resta apenas pontuar outros aspectos acerca da superexploração da força de trabalho, que não podem ser desdobrados no presente texto. Marini ressalta que a situação dos trabalhadores do campo, dos desempregados e subempregados, assim como do trabalho feminino e do menor de idade, diz respeito ao conjunto da classe trabalhadora, donde a análise acerca da “forma de exploração e da taxa geral de exploração” deve ser feita “do ponto de vista do conjunto da massa trabalhadora”, o que significa, por exemplo, “que a classe operária não é uma classe privilegiada, mas uma classe superexplorada, justamente pela existência de setores miseráveis e mais negligenciados na sociedade”. É precisamente essa situação “que cria as condições sob as quais o capital pode operar e impor um regime de exploração muito mais violento à classe trabalhadora” (MARINI, 1972). Essa afirmação de Marini recobre-se de importância para a análise do racismo, embora nosso autor não tenha tratado especificamente da racialização da classe trabalhadora no Brasil, que, no entanto, também é uma das principais condições sob as quais o capital impõe a superexploração da força de trabalho. Como elucidado por Marx, e nessa trilha por Clóvis Moura e outros, o racismo não é uma subjetivação ou prática social apartada das relações capitalistas, mas resultado das relações materiais desse modo de produção. O objetivo da classe dominante no Brasil é ver as trabalhadoras negras e os trabalhadores negros marginalizados/subalternizados para baixar os salários do conjunto da classe trabalhadora (MOURA, 2021). A discussão acerca das bases de sustentação do capitalismo brasileiro – as bases materiais do racismo, assim como do patriarcado, de sua funcionalidade na reprodução do capital e, pois, da superexploração da força de trabalho – é crucial para reposição da perspectiva de superação desse modo de produção.
Parte II
O núcleo da tese de Cardoso residia na ideia de que a realidade socioeconômica brasileira se desenvolveria por via dependente e associada ao capital imperialista. Perspicaz, ele interfere nas pautas das esquerdas que defendiam a ruptura com o capital imperialista, contrárias ao que, na prática, vinha ocorrendo: junção de capitais nacionais e externos, levando à perda de autonomia nacional no plano do capitalismo geral. Porém, no entendimento de FHC, tais relações trariam vantagens para o Brasil, especialmente na captação do avanço tecnológico e acesso ao capital financeiro imperialista, já que conhecia e aceitava a natureza francamente permissiva dos setores dominantes dessas operações.
Um dos pontos relevantes das análises de FHC, que o diferencia radicalmente da de Marini, é a ditadura militar, que é explicada por Cardoso como um processo de modernização do estado brasileiro e aprofundamento da industrialização, porém com restrição política. Cardoso entende que a modernização do estado executada pelos militares pôs fim ao percurso político manipulatório populista, cuja última manifestação se deu no governo Goulart. De maneira que Cardoso se orienta por esse conceito, populismo, de forma acrítica, assimilando-o como se fosse categoria emergente do real.
Ele acolhe o golpe ditatorial como condição para a superação dos limites postos pelo populismo, que ele trata por revogação democrática, ou desvio de uma tendência contínua (CARDOSO, 1971, p. 53). Considerou, também, a ditadura como uma inserção “cirúrgica”, de média duração, para solucionar, ajustando, os andamentos político-econômicos descontrolados. Ele define o papel da ditadura militar, utilizando a noção de poder autoritário-corporativo, exaltando a estruturação feita por esse regime, de criação de um mercado supranacional, que resolveria os problemas de economia de escala e de mercado de sociedades, em que a participação no consumo é restringida. A ditadura militar buscou os meios para facilitar e ampliar as inversões do capital externo, interferindo para que se marginassem os setores populares do sistema de decisões, como condição básica para acelerar a formação interna de capitais e assegurar seu controle por meio de grandes unidades produtivas monopólicas: estrangeiras, nacionais e estatais.
Essa associação entre capitais teve seu ponto de partida no governo JK, configurando-se no que foi tratado por tripé desenvolvimentista, formado por capital nacional, externo e estatal, demovendo a burguesia de sua oposição ao antigo estado. Cardoso afirma que, para que a burguesia investisse em países de capitalismo dependente, era necessário que o estado ou o capital externo se lançassem em conjunto. Com a ditadura militar foi aprofundada e complementada a segunda condição.
Nesse sentido, a ditadura militar cumpriu funções decisivas na área política, ao reprimir e excluir a força de trabalho, para que a burguesia, por sua debilidade congênita, pudesse mover-se com tranquilidade no campo econômico, o que, de fato, ocorreu, a burguesia brasileira aproveitou a conjuntura cumprindo um papel subordinado na associação de capitais “como caudatária dos grandes grupos monopólicos, ou como dependente do setor público” (CARDOSO,1969, p. 184). Há, na ditadura militar, características que possibilitaram uma emersão econômica, pois, conforme Cardoso, a ditadura militar soube introduzir no Brasil as condições necessárias para a transformação dos empreendimentos capitalistas, por meio das associações, aproximando o país das formas próprias do capitalismo desenvolvido. Nisto consiste o caráter revolucionário do governo militar, que “necessitava da prévia desarticulação dos instrumentos de pressão e defesa das classes populares” (CARDOSO, 1971, p. 55).
A ditadura militar conquistou “a estabilidade relativa na aliança entre militares, burguesia e classes médias”, por meio de uma “revolução econômica” que tornou compatíveis “as diversas facções (…) em face de inimigos maiores, estes sim, antagônicos, representados pela ameaça de uma política favorável às classes populares” (CARDOSO, 1971, p. 68). O caráter revolucionário do estado militar consistiu, em última análise, no aprofundamento das relações político-econômicas do Brasil com o imperialismo, que teria passado a oferecer condições mais favoráveis após a Segunda Guerra Mundial. Esse processo de desenvolvimento e modernização dos militares, pela exclusão política dos trabalhadores, pela contenção salarial e restrição política geral, conduziu Cardoso a denominá-lo de revolução conservadora, ou modernização conservadora.
O coroamento desse processo de restrição política se dá com a eleição de Garrastazu Médici. Assim, “Com a Instituição Armada, como corporação, assumindo em forma crescente o controle do estado, implantava-se um modelo relativamente estável de dominação burocrática” (CARDOSO, 1971, p. 78). De maneira que, para o autor, as forças armadas cumpriram um papel decisivo na renovação política e no desenvolvimento econômico. “Trata-se da capacidade reguladora de um estado cada vez mais forte” (CARDOSO,1975, p. 48).
De forma que a posição de Cardoso sobre os movimentos do mundo do trabalho reflete, em grande parte, seu acolhimento do processo de intervenção no modelo econômico pela ditadura, como também a intervenção do estado ditatorial nessa esfera social. Ele afirma que os atos ditatoriais não só “roubaram a práxis proletária”, como transformaram, “de fato, o movimento operário num tipo de ação perfeitamente enquadrada na esfera racionalizada da atividade social” (CARDOSO, 1969, p. 213), pois “houve o reconhecimento social do direito do trabalhador reivindicar, e criaram-se os canais institucionais para que a ação do operariado pudesse exprimir-se legitimamente nos quadros definidos pela ordem social global” (CARDOSO, 1969, pp. 213-214).
Observemos, de entrada, que o conceito de dependência ganha destaque teórico na década de 1960 com a construção teórica por FHC, embora essa rubrica viesse sendo utilizada espontaneamente nas discussões políticas. A teorização do conceito, que não deve ser confundido com categoria social, resulta de sua reflexão sobre os debates entre as várias perspectivas e vertentes políticas, que desde finais da década de 1950 e inícios de 1960, buscavam compreender a realidade brasileira daquele período, para traduzi-la teoricamente na busca de uma trajetória mais congruente com a especificidade capitalista periférica. FHC justifica sua adoção do conceito, em seu trabalho com Faletto de 1967 (CARDOSO; FALETTO, 1981), afirmando ter se orientado pela formulação leniniana, que distinguia países coloniais, semicoloniais e dependentes dominados pelo imperialismo e que revelavam graus de desenvolvimento tanto mais elevados quanto mais distantes do formato colonial originário. Ele afirmava que Lenin projetara sua análise a partir do polo externo desses países, enquanto ele buscava completar aquele caminho analisando seu polo interno.
Em seu ensaio intitulado Dialética da Dependência (2000a) Ruy Mauro Marini tece considerações críticas às formulações sobre a realidade latino-americana, promovendo uma análise distinta de Cardoso/Faletto. Essa publicação suscitou em Cardoso a necessidade de enfrentar e contraditá-la teoricamente, pois os fundamentos que a orientavam não correspondiam às concepções que esboçara com Faletto, além do fato de supor que seria sua a paternidade do conceito de dependência. A polêmica que nasce entre Cardoso e Marini, consubstanciada em artigos político-teóricos, atravessou praticamente toda a década de 70, sem qualquer possibilidade de conciliação, visto tratar-se de posições originariamente diversas, de concepções excludentes que, embora examinando a mesma realidade histórica, foram projetadas a partir de perspectivas opostas.
Em Dialética (2000a), Marini procura mostrar que o conceito de dependência expressa a singularidade do capitalismo brasileiro, ou seja, uma relação de subordinação entre países formalmente independentes, relação essa forjada pelos países europeus na América Latina, na fase colonial, com apoio do capital comercial. Segundo Marini, a subordinação inicial tomou forma com a estruturação do modelo político-econômico internalizado na América Latina, de maneira a assegurar a reprodução ampliada das condições próprias de dependência, e seus corolários político-econômicos.
Desde logo, Marini demarca-se de Cardoso e Faletto, pois, ao contrário destes, concebe a dependência como subordinação. Estes últimos, embora indiquem a existência de uma relação de dependência nos planos tecnológicos e financeiros, entendem, apoiados em um explícito politicismo, que, pela esfera da política, se forjariam as condições para suplantar os elos de subordinação e a ruptura com o subdesenvolvimento no interior das relações de dependência.
Dando sustentação à sua argumentação, Marini observa que a diferenciação econômica centro/periferia é explicada não pelas relações mercantis propriamente, em que os concorrentes forçam a queda dos preços, mas pelo crescimento lento da produtividade na América Latina, que não pôde acompanhar as pressões da concorrência no mercado, dada a fragilidade de sua organização produtiva, pois reproduzia-se de forma extensiva sem assimilar os padrões tecnológicos necessários, tanto para efeito concorrencial, quanto para garantia de extração do valor excedente da força de trabalho, sob determinação mais adequada, sob a forma relativa da mais-valia.
De outro lado, ele põe em relevo a existência de uma contradição que de nenhuma forma poderia se pôr nos países europeus. Trata-se da separação, presente até 1930, entre duas esferas da circulação. Uma interna e outra externa, que corresponde às relações de troca entre bens primários para exportação, bens suntuários e meios de produção, ambos importados. A outra, limitada ao plano interno, é restrita à força de trabalho num padrão assemelhável à autossubsistência. Aqui, ao contrário, o dinamismo interno esteve submetido a relações de troca tais que impediam a formação de um mercado interno consistente. Essa dicotomia – estabelecida pela forma de organização produtiva aqui desenvolvida – entre a produção que se externaliza e a que se volta para o mercado interno foi favorecida por uma abundante reserva social de mão de obra. De forma que a realização da produção no Brasil, até o período inicial da industrialização, não dependeu de capacidade interna de consumo, pois ao dinamismo das importações correspondia o dinamismo de uma produção para fora, o que confirma a formulação esboçada por Marini, de que o consumo individual total estava posto em esferas contrapostas, enquanto a produção dos bens da força de trabalho é interna, limitada à subsistência e a um restrito assalariamento fragilizando este mercado, os bens capitalistas dependiam da produção externa, compensada por uma produção extensiva, monocultora para exportação.
De acordo com Marini, o processo de industrialização brasileiro inicia-se na fase de crise agrária, a partir de 1930, sob forma substitutiva e atinge um ritmo acelerado somente após a Segunda Guerra Mundial, no início da década de 50. Porém, a industrialização não elimina ou supera as contradições econômicas presentes na fase agroexportadora, ao contrário, implanta-se e desenvolve-se de forma comprometida com a já indicada cisão no bojo da circulação, o que impediu a implantação de uma economia industrial consistente e completa.
Após a Segunda Guerra Mundial, com o impulso internacional visando a expansão produtiva e de mercado, a industrialização brasileira dinamizou-se com base num polo moderno da indústria internacional, implantando aqui, com base na exportação de bens primários e de capital externo, o setor produtivo de bens suntuários destinados aos setores de alta renda. Com a modernização industrial criou-se, diz Marini, uma nova separação na esfera de circulação do capital afastando, ainda mais, o setor de alta renda dos segmentos populares e do trabalho, agora não mais pela dicotomia mercado nacional e mercado externo, mas no âmbito do próprio mercado interno.
A forte demarcação no entendimento sobre as relações de produção aqui desenvolvidas foi a base sobre a qual se erigiram as polêmicas entre os autores indicados, mormente no plano da exploração do trabalho, especialmente quando se tem em vista a categoria de superexploração do trabalho.
Cardoso abre as polêmicas (1976) observando que a formação da mais-valia relativa na Europa, particularmente na Inglaterra, não dependeu da produção latino-americana na proporção enfatizada por Marini, pois a cesta básica da força de trabalho contava com produtos industrializados também, e quando se trata de países centrais, desenvolvidos, é necessária a inclusão dos EUA, cuja importação é sensivelmente mais reduzida que a da Europa. Cardoso afirma também que a exploração da força de trabalho na América Latina contou com uma combinação de formas, mas que de maneira alguma chegou a uma situação irrefreada, como supôs Marini, pois tal tendência descaracterizaria o capitalismo industrial. E, para sustentar sua afirmação, faz uma analogia com as análises de Lenin sobre a penetração do capitalismo na Rússia, destacando que esse sistema desempenhou um papel progressista no desenvolvimento das forças produtivas e na dinamização das relações de produção russas.
Reduzindo a importância e significado das abordagens de Marini, pondera que o que de fato importaria, antes de tudo e concretamente, seria verificar na periferia o desenvolvimento sob a ótica do capital, do investimento, muito mais que dos possíveis requisitos dos países centrais sobre a superexploração da força de trabalho na periferia, tema que estaria em aberto para futura exploração. Em resposta à reiteração de Marini de que o capitalismo dependente, pelo ângulo econômico, se mostra insuficiente tanto no sentido de estruturar-se como capitalismo autônomo, quanto no que concerne à remuneração da força de trabalho, que se veria sujeita a uma exploração excessiva, Cardoso apenas nega tal situação, como uma impossibilidade mesmo para um país dependente.
Cardoso se alia teoricamente a J. Serra para contestar as concepções de Marini, em um artigo denominado As Desventuras da Dialética da Dependência (CARDOSO; SERRA, 1980). Iniciam contrapondo-se à ideia de que a presença do capital imperialista promoveria a descapitalização dos países dependentes – entendimento que os autores consideram próprio do pensamento nacional-desenvolvimentista e ortodoxo de esquerda criticado por eles – cujo suposto seria a superação da dependência pela revolução democrático-burguesa, posição essa atribuída a Marini e, tomando como mote a crítica a esse pensamento, o texto prossegue lembrando que Cardoso indicara antes do golpe ditatorial, em 1963, que a burguesia nacional optara pela ordem, de forma que desse setor jamais emergiria um procedimento revolucionário.
Marini responde às “Notas…” de FHC (1976) com o artigo Em Torno da Dialética da Dependência (1973), repondo seus argumentos com os quais mostra que a determinação da circulação do capital comercial na subordinação da América Latina, no período colonial, e a continuidade da produção agroexportadora na fase de desenvolvimento industrial dos países centrais caracterizam a organização produtiva que aqui vai se instalando como funcional em relação ao capital imperialista.
Disto resulta, para a acumulação na periferia, um tratamento diferenciado da força de trabalho, que Marini designa sinteticamente, com base em O Capital de Marx, como superexploração da força de trabalho. A condição para esse tratamento diferenciado, mesmo quando se inicia aqui a industrialização sob a forma substitutiva, reside na diferença de composição orgânica de capital, responsável pela desigualdade nas relações de troca, na medida em que estas se estabelecem pelo preço médio forjando uma transferência de valor da periferia para o centro. Com baixa composição orgânica, a acumulação de capital no Brasil encontra como única alternativa de sua acumulação a superexploração da força de trabalho, inclusive após a presença da mais-valia relativa.
Marini destaca, também, outro argumento de “As Desventuras…” (1980) para indicar a insuficiência teórica de Cardoso e Serra, mostra que ao compararem as condições de vida na Argentina e no Uruguai, para afirmar que eram piores do que as do Brasil, não consideraram que aquelas condições péssimas de vida resultaram, também, da superexploração da força de trabalho ou, no mínimo, a revelam.
O centro nevrálgico do conceito de capitalismo dependente de Cardoso, por sua vez, funda-se nas associações entre capitais de origem nacional e externa que, na vida privada, vão sendo estabelecidas. Repondo seu arraigado politicismo, Cardoso argumenta que as relações associativas deverão ir controlando o fluxo de capitais que estão na base daquelas relações associativas.
Por seu lado, Marini toma a formação das distintas relações de produção, nos países centrais e nos periféricos, para ressaltar que o processo de reprodução econômica em ambos repõe-se sempre no interior do desenvolvimento geral do capitalismo internacional, onde as devidas particularidades devem ser mantidas ou mesmo aprofundadas.
De forma que a distinção entre eles, geradora das polêmicas, repousa, a nosso ver, em dois pontos evidenciados por Marini: a identificação que faz entre dependência e subordinação, e a inextricável conexão com o outro ponto, a superexploração da força de trabalho como determinação e continuidade das relações entre a dependência e o imperialismo.
Por fim, queremos observar que Cardoso e Serra perderam a compostura intelectual no decorrer das polêmicas, como demonstra Marini em seu texto-resposta (2000b). Eles não pouparam sarcasmo em suas várias referências a Marini, como por exemplo: “Marini, en bon marxisme, procurou fazer a revolução copernicana”, ou “se Marini tivesse aproveitado bem os textos cepalinos”, ou “Marini propôs uma bizarra teoria do intercâmbio desigual”, ou “confunde alhos com bugalhos”, ou “Assim, ao contrário do Senhor que fez das trevas luz, Marini (…) fez do que era claro escuridão” (CARDOSO; SERRA, 1980). Esses exemplos são suficientes para indicar os motivos das observações de Marini logo no início do seu texto (2000b).
Marini assinala a postura teórica de Cardoso e Serra nos seguintes termos: “As Desventuras(…), em seu conjunto, constitui um texto desalinhado e truculento, que deforma quase sempre minhas análises para poder criticá-las, manipula os dados que utiliza (ou não utiliza) e que brilha pela falta de rigor, pela torpeza e inclusive pelo descuido no manejo de fatos e conceitos” (MARINI, 2000b, p. 168). Além disso, embora Marini tivesse aberto sua Revista de Sociologia Mexicana para acolher os argumentos de Cardoso e Serra, seu texto-resposta não foi aceito por eles para publicação na Revista do CEBRAP demonstrando uma indecorosa postura acadêmica. Esse debate no qual polemizam Cardoso e Marini, consubstancia-se em artigos político-teóricos, que atravessaram, praticamente, toda a década de 70. Um dos méritos da polêmica reside em explicitar a objetividade socioeconômica brasileira, cuja origem histórica, distinta da dos países europeus, percorreu vias que impossibilitaram a reprodução das condições específicas daqueles países.
Considerações finais
Marini buscou, a partir de um posicionamento de classe notoriamente oposto ao de Cardoso e Serra, apreender o capitalismo dependente/subordinado com base nas determinações científicas de Marx, com o que explicita o conservadorismo e a estreiteza da opção teórica (weberiana) daqueles. Embora utilizem o conceito de dependência, FHC e Marini analisam a realidade latino-americana, e brasileira em particular, sob perspectivas de classe distintas. Enquanto Cardoso empreende uma crítica liberal/politicista à ditadura militar, enaltecendo a modernização da perspectiva do capital e defendendo uma democratização estritamente no âmbito das formas político-institucionais, Marini busca se opor à ditadura militar com base na perspectiva do trabalho.
Referências
CARDOSO, Fernando Henrique. Mudanças sociais na América Latina. São Paulo: Difel, 1969.
__________. O modelo político brasileiro e outros ensaios. São Paulo: Difel, 1971.
__________. Autoritarismo e democratização. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1975.
__________. “Notas sobre o estado atual dos estudos de dependência”. In: SERRA, José (coord.). América Latina – Ensaios de interpretação econômica. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1976.
CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina – Ensaios de interpretação sociológica, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 6ª edição, 1981.
CARDOSO, Fernando Henrique; SERRA, José. As desventuras da Dialética da Dependência. Revista Mexicana de Sociologia. México, nº 40, 1980 – Edição especial.
MARINI, Ruy Mauro. El subimperialismo brasileño. 1971. Disponível em: https://marini-escritos.unam.mx/?p=1207
__________.La acumulación capitalista dependiente y la superexplotación del trabajo. Intervención en el Encuentro de Economistas Latinoamericanos e Italianos, Roma, septiembre 1972. Disponível em: https://marini-escritos.unam.mx/?p=1221
__________. “Em torno da Dialética da Dependência”. In: Dialética da Dependência, México, Ediciones Era, Serie Popular Era, 1973.
__________. El ciclo del capital en la economía dependiente. In: Mercado y dependencia. OSWALD, Ú. (Coord.), México: Nueva Imagen, 1979a, pp. 37-55. Disponível em: https://marini-escritos.unam.mx/?p=1332.
__________. Plúsvalía extraordinaria y acumulación de capital. Cuadernos Políticos n. 20, Ediciones Era, México, abril-junio de 1979b, pp. 18-39. Disponível em https://marini-escritos.unam.mx/?p=1326
__________. Dialética da Dependência. In: SADER, E. (org.) Dialética da dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 2000a.
__________. As razões do neodesenvolvimentismo (resposta a Fernando Henrique Cardoso e a José Serra). In: SADER, E. (org.) Dialética da Dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 2000b.
__________. Dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil. In: SADER, E. (org.) Dialética da Dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 2000c.
MARTINS, Carlos Eduardo. “Superexploração do trabalho e acumulação de capital: reflexões teórico-metodológicas para uma economia política da dependência”, 1999. Disponível em: https://www.pampalivre.info/superexploracao_do_trabalho_e_acumulacao_de_capital.htm
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Anita Garibaldi, 2021.
NOTAS
* Maria Goreti Juvencio Sobrinho Doutorado em Ciências Sociais PUC/SP e Pesquisadora do Núcleo de Estudos de História: Trabalho, Ideologia e Poder – NEHTIPO PUC/SP
Ivan Cotrim Pós Doutorado em História Econômica PUC/SP. Centro Universitário Fundação Santo André. Brasil
[1] Trabalho apresentado no IV Congresso Internacional da Adhilac Brasil, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 26 a 30 de novembro, 2022.
[2] As Partes I e II foram redigidas, respectivamente, por Juvencio Sobrinho e Cotrim.
[3] Vale lembrar que, para Marx, “’Toda variação na magnitude, extensiva ou intensiva, do trabalho afeta (…) o valor da força de trabalho, na medida em que acelera seu desgaste’” (apud MARINI, 2000a, p. 126).
[4] Marini adverte: “o conceito de superexploração não é idêntico ao de mais-valia absoluta, já que inclui também uma modalidade de produção de mais-valia relativa – a que corresponde o aumento de intensidade do trabalho” (2000a). Ademais, a mais-valia absoluta não implica, necessariamente, que a força de trabalho seja remunerada abaixo do seu valor real. Para que ocorra a superexploração da força de trabalho, mediante o prolongamento da jornada de trabalho (ampliação do trabalho excedente), é necessário que a força de trabalho seja remunerada abaixo do seu valor real, isto é, que não receba uma remuneração equivalente ao seu desgaste. Marini lembra que Marx, ao conceituar mais-valia absoluta como resultado do prolongamento do tempo de trabalho excedente, “independentemente de que se mantenha igual o tempo de trabalho necessário dentro da jornada de trabalho”, parte do suposto “de que a força de trabalho seja remunerada de acordo com seu valor” (MARINI, 1972).
[5] Setor I refere-se aos ramos produtores de meios de produção; setor II refere-se aos setores dedicados à produção de meios de consumo, que, por sua vez, são subdivididos em IIa (bens-salários ou bens de subsistência) e IIb (bens suntuários ou artigos de luxo).
[6] O aumento da força produtiva do trabalho permite ao trabalhador produzir uma quantidade maior de produtos (de valores de uso) no mesmo tempo, não mais valor.
[7] O pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor tende a se estender também aos setores monopólicos, que, inclusive, já se beneficiam dos efeitos da superexploração operada nos ramos produtores de matérias primas e insumos (MARINI, 1979a).
[8] A modernização enaltecida por Cardoso ocorreu sob maior espoliação da força de trabalho. Enquanto os salários foram reduzidos quase pela metade, o valor da força de trabalho cresceu, não apenas no que se refere à alimentação, mas também em outros itens como equipamento doméstico, transporte, educação e recreação, que correspondem àqueles gastos “que Marx chama de valor histórico-moral”. Mais membros da família operária foram obrigados a ingressar no mercado de trabalho: as mulheres, que chegaram a receber “salários inferiores aos dos homens em 57%”, e os menores de idade, para os quais a ditadura do grande capital “decidiu reduzir legalmente em 50% o salário-mínimo”. Com isso, “O capital não só compra com menos dinheiro uma massa maior de trabalho, mas aumenta consideravelmente a taxa de exploração”, de sorte que, “em função da queda do salário-mínimo e da exploração sem misericórdia da mulher e do menor”, a renda familiar diminuiu, “apesar de ter duplicado o número de membros da família que trabalham” (MARINI, 2000b, pp. 220-23).
[9] O mercado interno restrito foi também acentuado pela histórica conciliação da burguesia industrial com o setor agrário. A manutenção da estrutura agrária do país (latifúndio, produção agrícola voltada para o exterior, superexploração, entre outros) significou a conservação dos limites que esta estrutura impôs à ampliação do mercado interno de consumo para os produtos industriais (MARINI, 2000a; 2000c).
[10] Conforme MARTINS (1999).
[11] Especialmente a tese de TAVARES, Maria da Conceição. Acumulação de capital e industrialização no Brasil, Campinas, Editora da Unicamp, 1986, e o trabalho de OLIVEIRA, Francisco de. Padrões de acumulação, oligopólios e Estado no Brasil (1950-1976). In: A economia da dependência imperfeita. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989. Trata-se de interpretações distintas, mas ambas, segundo Marini, limitam-se ao universo da circulação. Vale observar que traremos à tona apenas alguns aspectos da análise desenvolvida por Marini em Plusvalía (1979b), porém, cabe destacar que o autor faz uma rica discussão, por exemplo, dos esquemas de reprodução do livro II de O capital. Alerta que, para análise de situações concretas (como a economia dependente), é necessário “modificar os pressupostos que Marx utilizou, especialmente o da produtividade constante”. Marx “ao buscar estabelecer as proporções em que as mercadorias são trocadas, tomada como unidade de valor e valor de uso”, precisou“descartar as mudanças na produtividade ou na magnitude intensiva do trabalho, bem como, em geral, no grau de exploração” (MARINI, 1979b). São justamente essas mudanças relativas ao progresso técnico que Marini introduz em sua discussão sobre os esquemas de reprodução e, pois, em sua análise da estrutura produtiva da economia dependente, sem perder de vista o corpo teórico armado por Marx.
[12] Podem afetar negativamente o lucro extraordinário em IIb: “uma escala de acumulação tão rapidamente ascendente que freia a expansão do consumo individual criado pela mais-valia; atrativos excepcionais de poupança; crises setoriais em I ou IIa; etc.” (MARINI, 1979b).
[13] Marini acrescenta que esse efeito depressivo “pode ser contrariado por diversos mecanismos, entre os quais se destaca a superexploração do trabalho, principalmente no subsetor IIa. Mas, especialmente neste caso, a consequência desse efeito depressivo é a atrofia do subsetor IIa e a hipertrofia do IIb, com a correspondente distorção do setor I” (MARINI, 1979b).
[14] A parte da mais-valia que se acumula no país é deduzida da “parte da mais-valia que sai da esfera da economia nacional sob diversas formas: remessa de lucros, pagamento de juros, amortização, royalties, etc” (MARINI, 1979a).
