O Grupo Folha e a Ditadura Empresarial-Militar de 1964

Fernando Sérgio Damasceno* Antônio Pereira de Oliveira**

Resumo:

O golpe civil-militar de 1964 instaurou no Brasil uma ditadura que perdurou 21 anos, pondo fim a um período de parca democracia burguesa no país, período esse em que as organizações operárias e camponesas se construíam e se fortaleciam em todo território nacional. Como em toda ditadura, a ditadura civil-militar brasileira contou com o apoio da grande imprensa, que, por meio de seu colaboracionismo, legitimava em suas páginas as maiores atrocidades cometidas pelo governo, a perseguição de lideranças sindicais e o aumento da taxa de exploração dos trabalhadores, que ao reivindicarem suas pautas passaram a ser retratados nas páginas da imprensa como subversivos e ameaça à pátria. O presente artigo visa à discussão desse apoio da imprensa brasileira à ditadura, debatendo essa questão a partir das intervenções do Grupo Folha na cidade de Santos, por meio de seus órgãos A Tribuna da Cidade de Santos (fundado em 1894) e Folha da Tarde, (1967).

Palavras chave: Grupo Folha; Colaboracionismo, Golpe civil-militar de 1964.

Abstract:

The civic-military coup of 1964 established a dictatorship in Brazil that lasted 21 years, putting an end to a period of meager bourgeois democracy in the country, a period in which worker and peasant organizations were built and strengthened throughout the national territory. As in any dictatorship, the Brazilian civil-military dictatorship had the support of the mainstream press, which, through its collaborationism, legitimized in its pages the greatest atrocities committed by the government, the persecution of union leaders and the increase in the exploitation rate. of the workers, who, by vindicating their guidelines, began to be portrayed in the pages of the press as subversives and a threat to the homeland. This article aims to discuss the support of the Brazilian press for the dictatorship, debating this issue from the interventions of Grupo Folha in the city of Santos, through its organs A Tribuna da Cidade de Santos (founded in 1894) and Folha da Tarde, (1967).

Keywords: Folha Group; Collaborationism, Civic-military coup of 1964.

Resumen:

El golpe cívico-militar de 1964 instauró en Brasil una dictadura que duró 21 años, poniendo fin a un período de exigua democracia burguesa en el país, período en el que se construyeron y fortalecieron organizaciones obreras y campesinas en todo el territorio nacional. Como en toda dictadura, la dictadura cívico-militar brasileña contó con el apoyo de la gran prensa, que, a través de su colaboracionismo, legitimó en sus páginas las mayores atrocidades cometidas por el gobierno, la persecución de los líderes sindicales y el aumento de la tasa de explotación. de los trabajadores, quienes, al reivindicar sus lineamientos, comenzaron a ser retratados en las páginas de la prensa como subversivos y una amenaza a la patria. Este artículo tiene como objetivo discutir ese apoyo de la prensa brasileña a la dictadura, debatiendo esta cuestión a partir de las intervenciones del Grupo Folha en la ciudad de Santos, a través de sus órganos A Tribuna da Cidade de Santos (fundada en 1894) y Folha da Tarde, (1967).

Palabras llave: Grupo folha; colaboracionismo, golpe cívico-militar de 1964.


Introdução

O golpe civil-militar que se impôs no Brasil a partir de 31 de março 1964, e vai até 1985, teve diversos apoiadores. O presente trabalho de pesquisa tem por objetivo discutir esse apoio no espaço da imprensa brasileira, especialmente por parte do Grupo Folha, que à época possuía alguns meios de comunicação, dentre eles Cidade de Santos e Folha da Tarde, fundados em 1967. Esses jornais foram colaboracionistas com a ditatura assassina e entreguistas do patrimônio público que se instalou em 1964. Aqui, se realizará esta discussão abordando material da época. Também queremos trazer à discussão o jornal A Tribuna, da cidade de Santos-SP, fundado em 1894, que teve um papel importante no apoio à ditadura desde o dia 1º de abril de 1964, quando ela se instala nos principais centros do país.

Este diálogo é muito importante para estabelecer uma memória verídica sobre a época, uma vez que, ao carregarmos no presente partes do passado, desfigurar o passado é desfigurar a nós mesmos. O Grupo Folha objetiva desfigurar o passado, tentando construir uma narrativa de que não realizou apoio algum à ditadura civil-militar de 1964, a partir de seus meios de imprensa. Narrativa essa que não se comprova nos fatos, como queremos discutir nas páginas a seguir. Até porque já existe uma robusta pesquisa que mostra essa colaboração, e em especial queremos nos apoiar na obra de Beatriz Kushnir, Cães de Guarda, que aborda muito bem esse período e a imprensa da época, especialmente o jornal Folha da Tarde

Antes de adentrar propriamente nas fontes e desenvolvimento do trabalho, é pertinente demarcar alguns elementos conceituais. O colaboracionismo seria o primeiro deles, que seriaa atividade, o comportamento de colaboracionista, que o dicionário: dizse de ou pessoa que colabora com ou apoia o inimigo que ocupa, total ou parcialmente, o território de seu país (HOUAISS, 2009. p. 490). Nesse sentido, a imprensa brasileira hegemônica se enquadra nesse perfil, principalmente os donos desses meios de imprensa, que colaboraram assiduamente com a ditadura civil-militar de 1964: dando uma conotação positiva à ditadura, censurando, elogiando os algozes, desclassificando pejorativamente aqueles que se opunham ao golpe, realizando uma cruzada contra o suposto comunismo, e sempre a favor da pátria e da liberdade que os militares supostamente traziam. Kushnir faz uma oportuna ressalva de que, no caso dos jornalistas, estes tiveram posições as mais distintas, desde apoio aberto, até atuação militante contra a ditadura, ou seja, houve aqueles trabalhadores dentro do jornalismo brasileiro que deram a vida contra o colaboracionismo

Outro conceito importante de se discutir é o de censura, uma vez que o mesmo perpassa por todo período ditatorial, sendo nos jornais a âncora mestre. Para Kushnir, o objetivo da censura é criar uma harmonia social ainda que imaginária. Assim, ela postula que:

Arrazoar a ação de proibir e censurar, de negar ao outro o direito de acesso a determinados temas; vigiar pessoas, ditar normas de conduta, excluir palavras do vocabulário; forjar de maneira brutal uma nova realidade, essas são algumas das indagações centrais e das preocupações acerca das estratégias do interdito. (KUSHNIR, 2012, p. 36) 

Nesse sentido, a autora observa que censurar é “um ato político”, e com ela temos pleno acordo: a ditadura de 1964 usou com toda força esse ato político para permitir dizer somente aquilo que lhe interessava, criar um mundo ideal paralelo. Enquanto isso, pessoas eram assassinadas, injustiçadas, e principalmente a classe trabalhadora em seu conjunto era impingida a vender sua força de trabalho a um reduzidíssimo valor, pois foi a principal coagida no processo ditatorial e impedida de reclamar seus parcos direitos trabalhistas e sociais. Para se ampliar a ideia a respeito do que já discorremos, é oportuno apresentar o Manual distribuído em São Paulo, assinado pelo General Silvio de Correia de Andrade, estabelecendo o que os jornais poderiam publicar, quando a ditatura apertou ainda mais seu cerco repressivo com o AI-5, em 13/12/68:

  1. Manter o respeito à Revolução de 1964;
  2. Não permitir notícias referentes a movimentos de padres e assuntos políticos referente aos mesmos;
  3. Não comentar problemas estudantis;
  4. Não permitir críticas aos Atos Institucionais, às autoridades e às FFAA;
  5. As notícias devem ser precisas, versando apenas sobre fatos consumados;
  6. Não permitir informações falsas, supostas, dúvidas ou vagas;
  7. Não permitir notícias sobre movimento operário e greves;
  8. Não permitir aos cassados escrever sobre política;
  9. Não publicar os nomes dos cassados a fim de não colocá-los em evidência, mesmo quando se trate de reuniões sociais, batizados, banquetes, festas de formatura. A prisão dos cassados poderá ser noticiada, desde que confirmada oficialmente;
  10.  Não publicar notícias sobre atos de terrorismo, explosão de bombas, assaltos a bancos, roubos de dinamite, roubos de armas, existência, formação ou preparação de guerrilhas em qualquer ponto do território nacional, ou sobre movimento subversivo, mesmo quando se trate de fato consumado e provado. (KUSHNIR, 2012. p. 109)

É importante deixar claro que todo ato de censura e penalidades criadas pelo Estado brasileiro partia do Executivo por meio do Ministério da Justiça. Assim, cabe conceber de forma clara o que é o Estado:

Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe por outra: é a criação de uma “ordem” que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão das classes (LÊNIN, 2007. p. 27).

Isso porque a sociedade já se dividiu em classes sociais antagônicas e inconciliáveis, e desse modo o Estado sempre será o da classe economicamente e politicamente dominante. Nesse contexto, quanto mais acirrado se torna o choque entre as classes sociais de explorados e exploradores, a classe dominante necessita, para manter sua condição de classe exploradora, intensificar seu modus operandi repressivo para recompor seu poder de coerção. É o que vamos ver com o golpe militar de 1964 e a ditadura civil-militar que daí surge até 1985.  Desse modo, para nossa pesquisa não resta nenhuma dúvida de que a classe trabalhadora foi a mais prejudicada com a ditadura, embora outros setores, como, por exemplo, a classe média, tenham sido reprimidos, mas a classe trabalhadora e em específico os setores operários foram superexplorados, mortos e torturados e, para que isso se transcorresse sem sobressaltos, a imprensa brasileira colaborou sobremaneira. É o que vamos ver a seguir nas páginas dos jornais A Tribuna de Santos e Cidade de Santos.

Desenvolvimento

Em uma breve localização histórica do Brasil no início dos anos de 1960 (SILVA, 1975), o que se pode ver é um período rico de organização da classe trabalhadora e setores camponeses. Não podemos esquecer aqui da questão de terras no Brasil, já que a lei sobre o assunto, que datava de 1850, inviabilizava o acesso à terra aos pobres e camponeses, pois de acordo com essa lei a única terra que poderia ser ocupada era a terra que fosse mercadoria, ou seja, comprada. Isso inviabilizou o acesso à terra no país, lembrando que o fim da escravidão, em 1888, não trouxe nenhuma reparação aos negros escravizados, e nem a proclamação da República em 1889 nem a República Nova de 1930 modificaram a realidade de um grande país pobre e agrário sem direitos sociais. Na década de 1950 se inicia um movimento camponês tímido no Brasil, mas já nos idos de 1960 esse movimento popular pela terra tem uma expressão forte de luta, principalmente no nordeste, onde o latifúndio e o coronelismo eram mais acentuados. Esse movimento culminou na criação das Ligas Camponesas, tendo como expressão mais conhecida a figura de Francisco Julião Arruda de Paula no nordeste. Contudo, o movimento pela terra tem atuação praticamente no país todo, com outras organizações de luta e dirigentes com o mesmo objetivo de acesso à terra aos pobres e camponeses.

Pelo lado dos trabalhadores urbanos, temos um crescimento elevado do movimento operário com a industrialização do país a partir dos anos 1930 e a adesão do Brasil às multinacionais automobilísticas que se instalaram no país na década de 1950. Desse modo, na década de 1960 o Brasil vivia uma singularidade interessante: ainda era de maioria populacional agrária, mas com o campo politizado ou se politizando pela questão do acesso a terra. Nas cidades, os principais centros urbanos em crescimento se industrializavam de forma rápida, e ao mesmo tempo as cidades não industriais do centro-sul sofriam influência do processo industrial intenso. Isso contribuiu para a formação de uma classe trabalhadora urbana mais aglomerada, consciente e com espírito associativo, se desdobrando na constituição de Associações, Sindicatos, Movimentos Sociais e Centrais, coisa inédita no país até aquele período.

No âmbito externo, tínhamos naquele momento um mundo polarizado entre o capitalismo, dirigido pelos EUA imperialista, somado à Europa pós-guerra dividida e com o estado de bem-estar-social; e do outro lado um Estado Operário Degenerado, dirigido pela burocracia stalinista de Moscou, que influenciava o movimento operário internacional (TROTSKY, 2005). Essa dualidade, conhecida também como bipolaridade, ou Guerra Fria, propiciava mais ânimo na luta de classes em âmbito internacional, e como fato culminante desse ascenso dos movimentos dos explorados temos a Revolução vitoriosa de Cuba em janeiro de 1959, que expropriou a burguesia daquela ilha, levando mais ânimo de luta a toda América Latina, e o Brasil também sofreu essa influência. É nesse contexto que vivia a classe trabalhadora no país quando veio o golpe de 1964. Nesse sentido, para quebrar essa ofensiva da classe explorada, o estado burguês buscaria usar todos os recursos, não somente os repressivos, mas também os da mentira, censura, confusão, desinformação, distorção, convencimento etc., e para isso contou com o colaboracionismo da imprensa burguesa. Podemos verificar isso desde o começo da ditadura, por exemplo, em um local com grande população operária, a cidade de Santos, no estado de São Paulo, onde se localizava o principal porto do país:       

Greve é crime contra a democracia

Em comunicado expedido ontem à noite e que divulgamos em destaque noutro local, a Capitania dos Portos convoca os trabalhadores do porto ao trabalho.

Estas linhas visam a chamar a atenção para esse apelo, que rigorosamente não caberia ser secundado por um comentário. Mas, preferimos insistir com os trabalhadores do porto pra que atendam à convocação, porque há muita gente enganada quanto à extensão do direito de greve, que não é o que ocorre mais na situação de emergência que é uma situação de fato, uma situação revolucionária. Nela, o direito de greve não existe.

Por que não subsiste?

Não subsiste porque estamos em uma luta, que é uma luta de vida e de morte pela sobrevivência da democracia, uma luta cuja a dimensão desborda da rotina das condições normais. Quem entra em greve, hoje, principalmente nos serviços públicos, é como se fosse um sabotador, o inimigo das finalidades pelas quais os exércitos de libertação nacional estão lutando, e uma tal posição anti-revolucionária, antidemocrática, implica consequências que começam na perda automática de emprego.

Queremos, no interesse dos próprios trabalhadores de toda a Baixada Santista, chamar a atenção para este ponto que é muito delicado, pois sabemos que, subterraneamente, reclama-se a greve e a greve geral contra o movimento de libertação do desgoverno em que o ex-presidente Goulart vinha mantendo a nação. Os que tentarem pela sabotagem, que a greve representa, sob qualquer modalidade, combater o movimento democratizador, deverão estar cientes de que correm o risco de sofrer todas as consequências. Será como pegar em armas contra as forças da libertação nacional que, em São Paulo, obedecem ao comando do general Amaury Kruel.

Insistimos neste ponto – não subsiste o direito de greve na situação atual. O grevista é inimigo da democracia e da liberdade, as quais estamos buscando recuperar, neste grave momento. (A Tribuna. Santos, 02.04.1964. p.4).

O jornal A Tribuna, da cidade de Santos, com essa matéria exposta na coluna COMENTÁRIOS,por vários pontosnão deixa nenhuma dúvida que estava ao lado dos militares golpistas. Primeiramente, o Presidente João Goulart, deposto, havia sido eleito pelo voto, e tão pouco tinha algum compromisso com o comunismo; era um grande latifundiário riograndense, que, devido à força do movimento operário e popular o qual apontamos, fazia algumas reformas, conhecidas como programa de Reformas de Base. O jornal, além de apoiar o golpe civil-militar, distorce completamente os fatos: o movimento que estava acabando com a parca democracia burguesa que havia no país era justamente o movimento golpista, que iria impingir 21 anos de ditadura ferrenha à sociedade brasileira, com maior prejuízo aos trabalhadores. Após vários amálgamas, o jornal A Tribuna chama os trabalhadores a se resignar com o quadro instalado, a voltar ao trabalho e abster-se de sua greve, considerada já naquele momento como um movimento de sabotagem. Ocorre que os trabalhadores, como explica SANTOS (2020, p.85), estavam em movimento legal de campanha salarial, uma vez que a empresa, Companhia Docas de Santos, concessionária da exploração do Porto de Santos, havia recebido tarifa para realizar o reajuste salarial que tinha se comprometido a executar perante os trabalhadores, e agora de forma oportunista se recusava a efetuar; e o jornal passa a chamar os trabalhadores de sabotadores, inimigos da democracia, e outros inúmeros termos pejorativos.

Nessa linha narrativa construída pelo jornal A Tribuna, o impacto mais negativo erguido pelo mesmo seria desacreditar o Sindicato dos Operários Portuários de Santos, fazendo a população crer que naquele espaço se realizavam as maiores confabulações contra o país na cidade. Deste modo, o coro aos golpistas pela intervenção no sindicato é estampado em cada página, se cria socialmente esse grande inimigo a ser combatido com toda energia, pois dali é que sai toda a “algazarra” contra a pátria amada. Nesse sentido, no dia 02 de abril, na página 20 de A Tribuna, como se pode observar no anexo 01, sai a foto da sede do sindicato ocupada por militares privados como medida protetora da ordem na cidade. Se diz na manchete que foi o único sindicato a sofrer interdição, contudo isso foi mais uma mentira. Como se pode observar no anexo 02, na mesma edição do jornal, página 08, mostra-se que em vários outros sindicatos há indicação para nomeação de interventores, pois o que passa a ocorrer nesses primeiros dias de abril em toda Baixada Santista é uma infinidade de interdições em todos os sindicatos da região, com a nomeação de novas diretorias. Essas novas diretorias, por conseguinte, serão correia de transmissão dos interesses da patronal e do Estado ditatorial no ceio das organizações classistas.

Nesse quadro iria se construir uma forte parceria entre sindicalistas biônicos/ditadura/patronal, no movimento sindical do país, situação que levou esse sindicalismo a ser chamado de “sindicalismo pelego”, e que gerou um prejuízo enorme para a classe trabalhadora em seu poder de organização e autonomia. Se olharmos por uma linha do horizonte temporal, esse tipo de sindicalismo pelego, tendo no Estado e na patronal os ditames do que seriam os “interesses dos trabalhadores”, foi implementado no Brasil com Getúlio Vargas em 1930, e naquele momento de início de século XX a experiência autônoma do movimento operário no Brasil mal chegava a duas décadas. Os 15 anos de governo Vargas (1930/45) esfacelaram essa recente organização classista independente. Em 1945, quando saiu Vargas do governo e se iniciou um novo movimento sindical, o mesmo foi interrompido em menos de duas décadas de reorganização, ou seja, em 1964, situação que perdurou no país até o início de 1980, quando se construiu a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Portanto, o relativamente jovem (1910) movimento operário brasileiro nunca teve uma trégua para sua auto-organização independente.

Desse modo, o golpe civil-militar de 1964 iniciava com toda força uma perseguição a esse praticamente recém-organizado movimento operário independente – dizemos independente sem entrar no debate a respeito do papel do colaboracionismo sindical/patronal realizado pelas organizações stalinistas no país, principalmente o PCB. Essa perseguição seria realizada primeiro contra os dirigentes sindicais, que foram presos às centenas na Baixada Santista. O papel que o jornal A Tribuna realizou nesse processo foi de colaborar para a construção da imagem negativa do dirigente sindical, e esse líder operário passaria a ser criminalizado com uma intensidade nunca vista antes. Adjetivos negativos foram criados e reprisados massivamente a cada matéria editada; distorções, censuras e mentiras foram utilizadas por esse meio de comunicação para criar e realçar a imagem negativa do dirigente sindical. Por exemplo, até uma simples expressão de opinião, que a própria legislação até aquele momento não imputava como crime (qual o regime social mais propício à sociedade?), para o jornal A Tribuna era conteúdo delituoso, que merecia matérias para denunciar, demonizar e criminalizar o opinante.

Tais fatos podem ser observados no anexo 03, em outra matéria do dia 04 de abril de 1964, página 20: “Polícia apreende material de propaganda comunista na sucursal ‘Novos Rumos’”. Na matéria são narradas as diligências do Dops a sindicalistas da cidade e à imprensa operária. No caso do jornal Novos Rumos, produzido pelo PCB na região, há toda uma descrição que criminaliza a imprensa operária, dizeres no sentido de como foi encontrado farto material subversivo, a respeito da existência de uma tipografia clandestina, etc. É notório como se vai construindo todo um enredo que colabora com a aceitação do golpe como medida medicamentosa; o golpe, chamado de revolução democrática, estaria trazendo o país à luz novamente, daí a necessidade de apoiá-lo para o bem comum da pátria. Até os quadros de pensadores, dirigentes e revolucionários que estavam pendurados na parede da imprensa operária Novos Rumos foram motivo de narrativa desconstrutiva, como se fossem pessoas exógenas, inadequadas à cultura brasileira. Nessa diligência se narra a prisão de gente notadamente esquerdista, ou seja, a matéria leva à ideia de que um grupo de pescadores havia feito uma excelente pescaria: no caso, a polícia havia conseguido dar uma grande redada e conseguido livrar a sociedade santista de gente e material criminosos, ou seja, o golpe estava promovendo uma higienização da Baixada Santista.

Nesse sentido, ao se observar a linha jornalística de A Tribuna, percebe-se o constructo de ações evidentemente autoritárias: destituição de diretorias sindicais eleitas e estabelecimento de interventores; prisão em massa de trabalhadores e ativistas; ocupação militar ou lacre de espaços operários; confisco; censura aos fatos reais; proibição de todo tipo de imprensa operária etc. Essas ações passam a ser uma rotina naturalizada pelo jornal A Tribuna como necessárias, justas e profiláticas diante dos males que o país estava enfrentando. Esse pensamento, essa ideologia geral não poderia ser construída pelos golpistas sem a colaboração da imprensa, ainda mais em uma região em que o movimento operário era muito atuante.

O caso do jornal A Cidade de Santos, de propriedade do Grupo Folha, fundado em julho de 1967, na cidade de Santos, é muito elucidativo para se verificar a colaboração dos meios de imprensa hegemônicos com a ditatura, conforme destaca SANTOS (2020, p. 87) em seu trabalho sobre a repressão na Cia. Docas de Santos.

Acusação

A acusação esteve a cargo do promotor Henrique Vailati Filho. Baseou seu pedido de condenação nos movimentos grevistas que eclodiram na Baixada antes da Revolução, bem como no depoimento do chefe da divisão do pessoal da Companhia Docas de Santos, Sr. Saulo Pires Vianna. Aparteado pelo advogado Eraldo Aurélio Franzese, o promotor acabou por reconhecer que “na verdade as provas eram falhas, mas existiam”. Confessou que era seu dever sustentar o pedido de condenação de todos, com exceção de Moisés Goís, contra quem não houve a mínima prova. (Relatório reservado nº 232 de 21.09.1967)

Esse relatório do Dops – que segue na íntegra no anexo 04 –, um documento sigiloso, saiu como matéria do jornal A Cidade de Santos, no dia 21 de setembro de 1967, página 06. A questão é: como isso pôde acontecer? É de conhecimento público que os arquivos do Dops e de todo aparelho repressivo só foram abertos parcialmente à pesquisa muito tempo depois da abertura política, e por meio de muita pressão popular. Nesse sentido, não resta dúvida que os agentes policiais eram ao mesmo tempo jornalistas do Grupo Folha, pois o relatório e a matéria veiculada são os mesmos, grafia e gramática, ou os jornalistas eram frequentadores desse espaço policial, o que não modifica em substância o colaboracionismo desse grupo de imprensa com a ditadura civil-militar de 1964.

Beatriz Kushnir observa, em seu trabalho de doutorado, que os meios de imprensa do país se misturaram de tal forma com a ditadura civil-militar de 1964 que se confundiam com ela. Nesse sentido, uma boa parte dos profissionais que passaram a trabalhar nos órgãos de imprensa eram policiais, e dessa forma a ditadura, além de controlar melhor o que poderia ser veiculado, trabalhava com os chamados Gansos – termo que passou a ser usado no jornalismo brasileiro, pois o ganso, uma ave de pescoço longo, consegue ver do outro lado, ou mais longe, por levantar sua cabeça a uma altura que as demais aves não conseguem. Assim, esses jornalistas/policiais poderiam saber em primeira mão a notícia; ver o que poderia ser veiculado e vigiar os demais jornalistas. O jornal A Cidade de Santos colaborou dessa forma com a ditadura ao ter em seu pessoal esses gansos. Desse modo, nesse espaço jornalístico se gabaritaram no colaboracionismo os jornalistas Antônio Aggio Jr. e Horley Antonio Destro, que, depois de 2 anos na direção do jornal A Cidade de Santos, foram transferidos para a capital paulista, para dirigir o jornal Folha da Tarde, do mesmo Grupo Folha. A partir de 1969, com o AI-5, o jornal Folha da Tarde passou a ser conhecido em São Paulo como o jornal de maior tiragem, e isso, como explica Kushnir, não se deve ao fato de aquele jornal ser o de maior venda, mas, sim, por possuir o maior número de policiais (tiras) trabalhando disfarçadamente ou não em sua redação. 

Conclusão

Pensar o jornalismo sem observar as classes sociais e a sua luta é um pensar estreito, simplório e idealista, e isso faz conceber uma sociedade sempre em evolução, conceber que, na medida do crescimento da conscientização, do fortalecimento das instituições burguesas, da participação da sociedade civil e da democracia, se chegará a uma sociedade justa e a um jornalismo comprometido com a verdade e neutro. Esse tipo de visão é a que mais perpassa nossa escola de imprensa, a própria imprensa e os profissionais dos dias de hoje. E basta darmos uma simples olhada em como os fatos são narrados, construídos e divulgados na mídia no cotidiano que notamos exemplos dessa visão. Vejamos o caso recente da morte da Rainha Elizabeth II da Inglaterra em setembro de 2022. A rainha foi tida pela imprensa como esplêndida, moderna, a mais elegante, arrojada, guardiã da democracia ao se alistar nas forças militares inglesas na II Guerra Mundial e por aí vai, sendo ressaltadas tantas e tantas outras qualidades da monarca. A verdade é que o Império Britânico, que não acabou – a rainha é prova disso –, embora dele só reste hoje a sombra do que foi no passado, foi um dos Império mais sanguinários que o mundo já teve, e no entanto a imprensa construiu outra figura desse fato real. A própria rainha, quando esteve no Brasil nos anos 1960, brindou junto com os militares, os mesmos militares que torturaram, que estavam envolvidos com o desaparecimento de pessoas, que ergueram a coisa mais escabrosa que se possa imaginar, a Casa da Morte, residência de tortura no estado do Rio de Janeiro, de onde somente saiu uma pessoa viva – os que ali entravam para ser mortos sob tortura tinham como recepção um varal na entrada da casa, em que a carne seca dos detentos que ali eram mortos era exposta em fitas; ou seja, um horror, e era com esse tipo de gente que a rainha brindava, mas a imprensa conta outra história dessa mulher.

Nesse sentido, na construção das notícias e dos fatos jornalísticos, a existência da referência de classe é norteadora do que se vai produzir enquanto narrativa histórica. O que pudemos observar nesta breve pesquisa a respeito destes dois jornais, A Tribuna e A Cidade de Santos, é que as notícias ali produzidas e veiculadas em massa colaboraram imensamente para um constructo positivo da ditadura. Justificaram as arbitrariedades, a censura, os assassinatos, amainaram os espantos, naturalizaram a superexploração que a classe trabalhadora santista passou a sofrer sem poder reclamar melhor o valor da venda de sua força de trabalho. A ditadura de 1964 não poderia sobreviver por tanto tempo se não contasse com a colaboração desses meios de imprensa, que criaram e multiplicaram a ideologia anticomunista. É claro que não foi só a imprensa que colaborou, a igreja tradicional também apoiou a ditadura, mas, pelo peso que naquele momento a imprensa escrita possuía (a televisiva ainda era pequena), seu apoio foi fundamental para a estabilização da ditadura por 21 anos.  

A pequena imprensa, operária ou alternativa, possuía uma enorme desvantagem econômica em relação aos grandes grupos, além de ser perseguida juridicamente, e dessa forma não podia concorrer com a imprensa burguesa pois era marginal, embora possuísse grandes jornalistas como Hermínio Sacchetta, críticos como Mario Pedrosa, diretores como Millôr Fernandes, cartunistas como Fortuna e Henfil, dentre tantos excelentes profissionais do meio. Assim, pudemos ver não somente a colaboração da grande imprensa com ditadura, mas também o sufocamento da imprensa alternativa ou classistas; quando termina a ditadura nossa imprensa é um grande monopólio, ou oligopólio da comunicação, dividido entre as grandes famílias brasileiras conforme a região de mando de cada uma delas. Mesmo com a eleição do PT e Lula a presidente do Brasil em 2002, o quadro do controle da notícia no país não mudou, e, pelo contrário, por “ironia”, no governo Lula foi o momento em que mais se fechou as chamadas “rádios piratas”, ou alternativas, modo mais justo de as chamar. Lula nesse momento poderia ter mudado as regras de concessões, ter tornado mais democrática a participação dos trabalhadores nos meios de comunicação, autorizando que sindicatos, centrais sindicais e movimentos sociais pudessem ter concessões de rádio e TV, mas negou esse direito a essas entidades e, por exemplo, permitiu que as igrejas abrissem vários canais de rádio e TV.

Bibliografia

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LEÓN, Trotsky. A revolução traída: o que é e para onde vai a URSS. São Paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2005.

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SANTOS, Adriana Gomes; NETO, Antônio Fernandes. Cia. Docas de Santos eternamente em berço esplêndido. Responsabilidade empresarial na repressão aos trabalhadores na Baixada Santista. São Paulo: Sundermann, 2020.

SILVA, Hélio; CARNEIRO, Maria C. Ribas. As Crises e as Reformas. Rio de Janeiro: Três, 1975.

ANEXOS