Polifonias do patrimônio cultural: apropriações do espaço urbano em Passagem de Mariana (MG)

Juno Alexandre Vieira Carneiro[1]

“Um lugar pode ser importante para uma comunidade por ser referência de seu dia a dia(…) podem significar novas descobertas, novos patrimônios que merecem ser cuidados”[2].

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“Todo espaço que possibilite e estimule, positivamente, o desenvolvimento e as experiências do viver, do conviver, do pensar e do agir conseqüente, é um espaço educativo. Portanto, qualquer espaço pode se tornar um espaço educativo, desde que um grupo de pessoas dele se aproprie, dando-lhe esse caráter positivo, tirando-lhe o caráter negativo da passividade e transformando-o num instrumento ativo e dinâmico da ação de seus participantes, mesmo que seja para usá-lo como exemplo crítico de uma realidade que deveria ser outra”[3]

Resumo

Discute-se os resultados de uma experiência de Educação Patrimonial com alunos do ensino fundamental da rede municipal por meio da apropriação do espaço urbano do distrito de Passagem de Mariana (MG). A atividade, realizada nas dependências do Museu da Música de Mariana (MG) teve como objetivo estimular a percepção do patrimônio cultural utilizando os sons cotidianos do meio urbano, – tomando o centro histórico da cidade como ponto de partida a busca dos lugares não consagrados pelas políticas oficiais de preservação patrimonial. As evidências demonstraram a efetividade de outras leituras possíveis do urbano, a partir dos lugares de sociabilidades nos quais os alunos constroem experiências pessoais e coletivas.

Palavras-chave

Patrimônio Cultural. Patrimônio Musical. Educação patrimonial. Espaço urbano.

Abstract: The results of an experience of Heritage Education with elementary school students from the municipal network are discussed through the appropriation of the urban space of the district of Passagem de Mariana (MG). The activity, carried out on the premises of the Museu da Música de Mariana (MG) aimed to stimulate the perception of cultural heritage using the everyday sounds of the urban environment, – taking the historic center of the city as a starting point the search for places not consecrated by the official heritage preservation policies. The evidence demonstrated the effectiveness of other possible readings of the urban, based on the places of sociability in which students build personal and collective experiences.

Keywords

Cultural Heritage. Musical Heritage. Heritage education. Urban space.


Introdução

Este texto tem por objetivo apresentar uma experiência de apropriação do espaço urbano no distrito de Passagem de Mariana-MG. Decorreu dos resultados da disciplina Educação Patrimonial[4]ministrada no ano de 2010 a alunos do ensino fundamental, como componente curricular do projeto “Educação Musical na Rede Municipal de Ensino de Mariana”, realizado mediante convênio entre a Prefeitura Municipal e o Museu da Música de Mariana (MMM), vinculado à Fundação Cultural e Educacional da Arquidiocese de Mariana (FUNDARQ).

Em linhas gerais, o projeto teve como objetivos: preparar os alunos para a prática vocal e instrumental; desenvolver possibilidades de aprendizado da música e estimular a percepção do patrimônio musical, em meio a outras modalidades de patrimônio cultural[5].

Polifonias do patrimônio

No primeiro módulo de Musicalização foram desenvolvidas atividades de educação patrimonial em que os alunos percorreram intuitivamente a cidade de Mariana a partir da identificação dos sons cotidianos – sinos de igrejas, ruídos de automóveis, apitos de trem, sons da natureza e demais sons citadinos – a partir da visualização de um mapa temático do centro histórico de Mariana e da utilização de teclado musical que reproduziu os sons cotidianos.

Em seguida, foi proposto exercício de percepção sonora dos bairros da sede e distritos de Mariana quando os alunos, reunidos em grupos, elaboraram desenhos que representavam os lugares e saberes existentes nas comunidades de origem. Este recurso didático objetivou trilhar o caminho inverso da apropriação da cidade: o centro histórico de Mariana foi o ponto de partida das percepções dos alunos, e os lugares “não consagrados” pelas políticas de preservação do patrimônio cultural foram escolhidos enquanto espaços de patrimonialização, portadores de sentidos e referências para esses alunos.

Assim sendo, a tarefa do dia partiu de uma indagação simples: “Se vocês me convidassem a conhecer o lugar em que vivem, onde me levariam?”. Em grupos, as crianças produziram desenhos em folhas de cartolina, e através desses lugares, a dimensão da minha experiência pessoal foi ganhando contornos precisos: uma cartografia de referências pouco conhecidas, que perfazem tempos e espaços dilatados e sobrepostos, mas que em traços vivos e multicoloridos dialogam entre si, não importando se representam o barroco mineiro, a modernidade, a rua, o bairro, a casa.

Essa atividade permitiu o reconhecimento do “patrimônio coletivo” do distrito de Passagem de Mariana, a partir do que é relevante na vida e história de cada aluno. Na ocasião, na condição de responsável pela disciplina Educação Patrimonial participei da elaboração do inventário e, através dos desenhos produzidos pelos alunos foi possível transcender a concepção da educação patrimonial como ferramenta de promoção e difusão apenas: tratou-se, como assinala (FLORENCIO, 2012, p.24), “essencialmente, da possibilidade de construções de relações efetivas com as comunidades, verdadeiras detentoras do patrimônio cultural”.

A proposta da educação patrimonial no projeto “Educação Musical na Rede Municipal de Ensino de Mariana” possibilitou a articulação das referências locais ao patrimônio musical de Mariana e do distrito de Passagem de Mariana, pautando-se pela dialogicidade e mediação como componentes essenciais do processo de valorização e preservação do patrimônio cultural. Nessa acepção, as ações educativas são ações mediadoras, ao passo que estimulam a afirmação dos sujeitos em seus mundos, em suas culturas e em seus patrimônios culturais.

Apropriações do urbano

Os desenhos abrangem as principais temáticas produzidas pelos alunos sobre Passagem de Mariana. Na amostragem, interessa-nos apreender o aspecto documental, o que eles indicam acerca dos lugares que fomos convidados a percorrer. Para fins didáticos, classificamos os desenhos em grupos temáticos, com o intuito de delinear uma visão de conjunto das temáticas.

Os lugares de vivência individual e comunitária

Desenho 1

Desenho 2

Os oito desenhos reproduzem parte das memórias coletivas da formação histórica do distrito de Passagem de Mariana, que se caracterizam, inicialmente, pelos lugares de vivência, tais como: a casa, a igreja, as praças, a escola (Desenhos 1 e 2). As demais turmas das escolas participantes do projeto também tiveram como ponto de partida os lugares de vivência.

São aqueles espaços de formação da criança, do contato com o mundo exterior, do desenvolvimento cognitivo e dos primeiros laços de sociabilidade. Talvez, os alunos tenham se apropriado daqueles espaços, pois “há histórias a contar”, pessoas a conhecer: os seus familiares, amigos, vizinhos, professores, há uma feição – ou feições – do lugar que transcendem a dimensão material. São, em certa medida, territórios afetivos, portanto, escolhidos para compor o inventário dos sentidos urbanos do distrito.

A memória coletiva da mineração e do transporte

Desenho 3

Desenho 4

Há lugares que remetem às memórias coletivas da mineração e demais atividades econômicas que se relacionam à vida dos habitantes do distrito (Desenhos 3 e 4). A Vila da Passagem, fundada em 1719 e situada entre as cidades de Mariana e Ouro Preto integra o circuito das “cidades históricas de Minas”, as vilas mineradoras do século XVIII. Ainda hoje ocorre a exploração de ouro em escala industrial na Mina da Passagem, principal atrativo turístico do distrito, onde os visitantes experimentam a descida às galerias em um transporte sobre trilhos.

A ferrovia compõe junto à Mina da Passagem, que atualmente é a maior aberta a visitações turísticas do mundo, com 120m de profundidade e um lago natural, os elementos da paisagem urbana que remetem às memórias das atividades econômicas. O ramal, com extensão de 18 Km entre Mariana e Ouro Preto, foi reativado pela companhia Vale para fins turísticos e locus de realização do Programa de Educação Patrimonial Trem da Vale. Entretanto, as memórias em torno da ferrovia e da Mina da Passagem possuem significados distintos para turistas, visitantes e a comunidade.

Acreditamos ser a transmissão geracional uma das motivações para as representações da ferrovia e da Mina da Passagem, pois exprimem os fluxos da vida, as experiências de gerações que se valeram daquelas atividades como forma de sobrevivência[6]. Ambas imprimem ao distrito uma feição urbana distinta do núcleo histórico de Mariana.

A arquitetura de feição colonial e barroca, difundida pelo ideário preservacionista do IPHAN nas primeiras décadas do século XX não domina a paisagem, excetuando-se a arquitetura religiosa representada pelas ruínas da Capela de Santo Antônio, da Ermida de Nossa Senhora da Conceição e a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória, tombada pelo IPHAN em 1954[7]. Então, quais representações distinguem e particularizam o distrito de Passagem de Mariana? Acreditamos que as memórias coletivas mobilizadas na feitura do inventário aproximam-se de uma concepção abrangente de patrimônio cultural e de outras possibilidades de apropriação do espaço urbano.

Espaços de lazer e culto

Desenho 5

Desenho 6

O patrimônio musical

Desenho 7

Os desenhos 5 a 7 ilustram espaços distintos – o campo de futebol, um cemitério e uma escola de música – representando importantes domínios da vida social para os habitantes de Passagem de Mariana. Neles, estão presentes momentos de lazer, de culto aos antepassados e de aprendizado de novas linguagens. A “escolinha de música” do desenho 7 diz respeito às relações que aquela comunidade estabelece com o patrimônio musical: a música é uma dimensão indissociável da formação histórica do distrito, e as crianças “respiram música” em seus lares, na igreja, nas ruas, praças, festas, celebrações e demais espaços de vivência coletiva. A esse respeito, a referência à “escolinha de música” relaciona-se à tradição das bandas de música do distrito. Há duas corporações: a Sociedade Musical São Sebastião e a Sociedade Musical Santa Cecília, assim como os coros de igrejas e demais grupos musicais. Trata-se, portanto, do entendimento de processos educativos não-formais, de tradições musicais enraizadas no cotidiano que se reinventam por meio da participação efetiva da comunidade detentora dessas referências musicais.

A perspectiva da paisagem cultural

Desenho 6

Desenho 8

Parece estranho o convite para conhecer um cemitério! Entretanto, destacamos os desenhos 6 e 8 como imagens-síntese das representações urbanas de Passagem de Mariana, onde estão ilustrados os equipamentos urbanos e elementos da paisagem, e o ponto final de nossa jornada pelo inventário dos sentidos, com o passeio pelo parque ecológico situado entre Mariana e o distrito de Passagem de Mariana:

O maior parque arqueológico de mineração colonial da América Latina […] os mais importantes sítios arqueológicos da história da mineração feita nas encostas de montanhas no alvorecer da atividade extrativa de ouro na região. Neles, é possível encontrar os vestígios das antigas técnicas mineratórias adotadas pelos primeiros exploradores […] nestes locais existem, e bem conservados, ruínas de mundéus, canoas, aquedutos, senzalas, cemitérios, igrejas, cemitérios dos escravos e dos ingleses anglicanos, buracos de sarilho, hospital, pilhas de rejeito de material estéril e muitas minas abandonadas. Levantamentos arqueológicos encontraram também ferramentas, moedas, cerâmicas, cachimbos usados pelos escravos e brunidores (O Espeto – Jornal Histórico Cultural. Passagem/Mariana – MG, 2013).

Um dos desdobramentos do reconhecimento do parque como referência de identidade para a comunidade foi a elaboração de abaixo-assinado com 701 assinaturas encaminhado ao IPHAN, ao Ministério Público de Minas Gerais e à Prefeitura de Mariana, solicitando os estudos de tombamento. Em decorrência, em 28 de fevereiro de 2008 foi sancionado o decreto No 4481 transformando a área em parque ecológico municipal. Nesse sentido, os cemitérios dos ingleses e dos escravos são um convite à compreensão da formação histórica como documentos passíveis de leitura e interpretação acerca das atividades extrativistas do distrito.

Considerações finais

A atividade significou a realização de um exercício de patrimonialização construído coletivamente. As crianças protagonizaram a instigante experiência de apropriação dos espaços urbanos do distrito de Passagem de Mariana através do estímulo ao aprendizado da música, nas dependências do museu da música.

Há nuances entre o projeto e o possível, entre o idealizado e a ação, portanto, a formação no campo do patrimônio cultural não deve prescindir da apreensão das sensibilidades humanas, sem as quais os sentidos sobre a preservação se diluem em meio a concepções tecnicistas e burocráticas, desconsiderando o protagonismo dos detentores dos saberes e experiências coletivas em dado território.

Os sons e melodias cotidianos – as polifonias – nos conduziram a lugares e espaços não contemplados na literatura sobre o patrimônio cultural. Portanto, o nosso inventário pautou-se pelo esforço de reconstituir outras leituras possíveis do urbano, a partir do estímulo aos sentidos de nossos alunos. A eles dedicamos este texto.

Referências

FLORÊNCIO, Sônia Regina Rampim. “Educação patrimonial: um processo de mediação”. In: TOLENTINO, Átila Bezerra (Org.) Educação patrimonial: reflexões e práticas. João Pessoa: Superintendência do Iphan na Paraíba, 2012.

FONSECA, Cláudia Damasceno. Mariana: gênese e transformação de uma paisagem cultural. Dissertação de Mestrado. Instituto de Geociências. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1995.

GOULART, Bya. MEC – Cadernos Pedagógicos: territórios educativos para a educação integral – a reinvenção pedagógica dos espaços e tempos da escola e da cidade. Brasília: MEC: Agosto, 2010.

BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Educação Patrimonial: Manual de aplicação: Programa Mais Educação. Brasília, DF: Iphan/DAF/Cogedip/Ceduc, 2013.

Museu da Música de Mariana (MMM). Educação musical em estágios múltiplos. Mariana: MMM, 2010.

“Gogô – Parque Arqueológico de Mariana”. O Espeto – Jornal Histórico Cultural. Passagem/Mariana – MG, 2013.


NOTAS

[1] Historiador, Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

[2] Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), 2013, p. 15.

[3] GOULART, 2010.

[4]A concepção de Educação Patrimonial do projeto alinhou-se às diretrizes da Coordenação de Educação Patrimonial do IPHAN. Logo, entende-se que “A educação patrimonial se constitui de todos os processos educativos formais e não-formais que têm como foco o patrimônio cultural apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócio-histórica das referências culturais em todas as suas manifestações com o objetivo de colaborar para o seu reconhecimento, valorização e preservação”. IPHAN, 2013.

[5] O projeto, realizado no ano de 2010 nas dependências do Museu da Música de Mariana, envolveu todas as escolas da rede municipal de ensino da sede e distritos, atendendo a aproximadamente 320 alunos, preferencialmente o quinto ano do ensino fundamental.

[6]Alguns dados reforçam as experiências mencionadas: na primeira década do século XX a exploração estrangeira da mina traz pequeno alento desenvolvimentista para Mariana. Em 1914, ocorre a inauguração do ramal da Estrada de Ferro Central do Brasil – EFCB, ligando Ouro Preto a Mariana. Em 1918, por convênio com a Ouro Preto Gold Mines of Brazil de Passagem de Mariana, realiza-se a instalação da luz elétrica em Mariana. Conferir: FONSECA,1995, p.146.

[7]Processo 0502-T. Livro Belas Artes Nº inscrição: 415; Vol. 1; F. 079; Data: 21/05/1954. OBS.: “O tombamento inclui todo o seu acervo, de acordo com a Resolução do Conselho Consultivo da SPHAN, de 13/08/85, referente ao Processo Administrativo nº13/85/SPHAN”.

Ariadna Tucma Revista Latinoamericana. Nº 13/14. Marzo 2019 – Diciembre 2022

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