A invisibilidade perdida: o anel de Gyges como metáfora neoliberal

Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes*

Resumo:

O anel de Gyges é um artefato mágico que permite àquele que o usar ficar invisível ou visível de acordo com sua vontade. O anel faz parte do desafio da justiça feito por Gláucon a Sócrates na República de Platão. Segundo ele, aquele que usasse o anel agiria conforme o seu desejo sem se importar com a injustiça de seus atos. A mão invisível é um conceito encontrado dentro da Riqueza das Nações de Adam Smith e que se popularizou na economia política para caracterizar a autorregulação do mercado. Segundo se defende, os interesses privados dos indivíduos proporcionam benefícios públicos e regulariam as relações interpessoais, de maneira que a sociedade tenda para uma harmonia social e, assim, se negue a existência de qualquer conflito entre classes. Este conceito se popularizou nas políticas neoliberais realizadas no mundo em defesa de uma diminuição da influência do governo na economia, deixando que o mercado possa se regular naturalmente. O intuito deste trabalho é utilizar a metáfora da invisibilidade para demonstrar que a regulação invisível do mercado é um mito e que o indivíduo quando é livre para agir como quiser irá buscar benefícios que, na maioria das vezes, não irá proporcionar ganhos coletivos.

Palavras-Chave: República de Platão. Anel de Gyges. Mão Invisível. Neoliberalismo. Economia Política.

The Lost Invisibility: The Ring of Gyges as a Neoliberal Metaphor

Abstract:

The Ring of Gyges is a magical artifact that allows the wearer to become invisible or visible at will. The ring is part of Glaucon’s challenge of justice to Socrates in Plato’s Republic. According to him, whoever wore the ring would act as he wished, regardless of the injustice of his actions. The invisible hand is a concept found within Adam Smith’s Wealth of Nations and that was popularized in political economy to characterize the self-regulation of the market. According to what is defended, the private interests of individuals provide public benefits and would regulate interpersonal relationships, so that society tends towards social harmony and, thus, the existence of any conflict between classes is denied. This concept became popular in neoliberal policies carried out around the world in defense of a decrease in government influence in the economy, allowing the market to regulate itself naturally. The purpose of this work is to use the metaphor of invisibility to demonstrate that the invisible regulation of the market is a myth and that when the individual is free to act as he wants, he will seek benefits that, in most cases, will not provide collective gains.

Keywords: Plato’s Republic. Ring of Gyges. Invisible Hand. Neoliberalism. Political economy.


Introdução

A busca pela invisibilidade sempre intrigou a imaginação humana, evocando questões sobre ética, moralidade e poder. Em meio a essa fascinação ancestral, surge uma poderosa metáfora da mitologia grega: o anel de Gyges. O mito do anel de Gyges, que surge pela primeira vez no Livro II da República de Platão[1], faz parte do desafio que Gláucon lança a Sócrates para que este prove que a justiça é superior à injustiça em qualquer situação contrafactual (Rep., 357b). Desse modo, o anel de Gyges seria o exemplo de uma dessas possibilidade em que a injustiça seria mais poderosa do que a justiça. Gláucon fará isso associando a gênese da justiça à uma espécie de contrato feito entre homens em que se estabelece o sentido de legal e justo. Isso faz com que a justiça só tenha existência através de uma convenção humana, perdendo toda possibilidade de existir anteriormente a isso. Segundo o mito, o anel concederia a seu portador o poder da invisibilidade, permitindo que agisse sem ser percebido e escapasse das consequências de suas ações. Ao relacionar essa narrativa mitológica ao contexto contemporâneo, podemos explorar o papel do neoliberalismo na criação de uma «invisibilidade» similar, onde as estruturas e os agentes poderosos operam livremente e sem responsabilidades. Neste artigo, examinaremos a temática da «Invisibilidade Perdida» e como o anel de Gyges pode ser interpretado como uma metáfora do neoliberalismo, revelando as implicações éticas, os limites e as consequências dessa invisibilidade nas esferas social, econômica e política. A metáfora da invisibilidade é um elemento que utilizaremos para demonstrar que a regulação invisível do mercado é um mito e que o indivíduo quando é livre para agir como quiser irá buscar benefícios que, na maioria das vezes, não irá proporcionar ganhos coletivos.

O anel da invisibilidade

Para início, colocamos a passagem por inteiro que trata do anel:

E o poder a que me refiro seria como o seguinte: terem a capacidade que se diz ter sido concedida ao antepassado do Lídio Gyges[2]. Era ele um pastor que servia na casa do que era então soberano da Lídia. Devido a uma grande tempestade e tremor de terra, rasgou-se o solo e abriu-se uma fenda no local onde ele apascentava o rebanho. Admirado ao ver tal coisa, desceu por lá e contemplou, entre outras maravilhas que contam no mito, um cavalo de bronze, oco, com umas aberturas, espreitando através das quais viu lá dentro um cadáver, visivelmente maior do que um homem, e que não tinha mais nada senão um anel de ouro na mão. Arrancou-lho e subiu. Como os pastores se tivessem reunido, da maneira habitual, a fim de comunicarem ao rei, todos os meses, o que dizia respeito aos rebanhos, foi lá também, com o seu anel. Estando ele, pois, sentado no meio dos outros, deu por acaso uma volta ao engaste do anel para dentro da palma da mão e tornou-se invisível para os que estavam ao lado, os quais dialogavam sobre ele como se tivesse ido embora. Admirado, passou de novo a mão pelo anel e virou para fora o engaste e, ao virá-lo, se tornou visível. Tendo observado estes fatos, experimentou, a ver se o anel tinha aquela capacidade, e verificou que, se tivesse seu engaste virado para dentro, se tornava invisível; se o voltasse para fora, ficava visível. Consciente disto, logo fez com que fosse um dos mensageiros do rei. Uma vez lá chegado, seduziu a mulher dele, e com o auxílio dela, atacou e matou o soberano, e assim tomou o poder[3].

Ao refletir sobre o mito do anel de Gyges, Platão levanta questões fundamentais sobre a natureza humana e a influência do ambiente e das circunstâncias sobre nossas ações morais. A história de Gyges levanta a seguinte pergunta: se tivéssemos a garantia de que nossas ações não seriam descobertas ou punidas, permaneceríamos fiéis a nossos princípios éticos? Para isso, Platão irá utilizar a personagem de Gláucon para propor um desafio da justiça a Sócrates. Segundo o argumento de Gláucon, a real natureza do ser humano é o ‘desejo de ter sempre mais’ (pleonexía[4]) e que este só respeita a lei por medo da punição, mas se pudesse agir pelo seu próprio desejo optaria pela injustiça, pois esta é um bem prazeroso. Para demonstrar isso, utilizará a narrativa de Gyges e seu anel. Ao descobrir que o anel que carrega concede a capacidade (dýnamis) da invisibilidade, Gyges usará este para matar o soberano da Lídia e assumir o governo. Gláucon irá ampliar esta história ao introduzir a questão dos dois anéis. Se for dado um anel ao justo e outro ao injusto, no fim, o justo agirá como o injusto, pois é natural que seu desejo procure agir com injustiça se não houver nenhum tipo de coerção da lei para impedi-lo disto. Dessa forma, ninguém seria justo por vontade própria, mas se pudesse cometer injustiça, cometeria.

Essa questão nos leva diretamente à contemporaneidade, onde podemos traçar paralelos entre o mito do anel de Gyges e as dinâmicas do neoliberalismo. No contexto neoliberal, a busca por interesses individuais e a maximização do lucro muitas vezes parecem sobrepor-se aos valores éticos e sociais. A ideia de que a invisibilidade oferecida pelo anel de Gyges permite agir impunemente encontra eco nas práticas empresariais e políticas que exploram lacunas regulatórias e fogem à responsabilização.

Nesse sentido, o mito de Gyges pode ser interpretado como uma metáfora para a invisibilidade moral que permeia os sistemas neoliberais, onde os indivíduos e as instituições poderosas muitas vezes agem sem restrições éticas. A conexão entre o mito e a modernidade nos convida a refletir sobre os sistemas de valores que sustentam nossas sociedades e a necessidade de um debate ético contínuo no enfrentamento dos desafios éticos do neoliberalismo.

A mão invisível

Uma das principais teorias associadas ao neoliberalismo é a do economista Adam Smith, que descreveu a existência de uma «mão invisível» que, supostamente, regula o mercado de forma eficiente e justa. A mão invisível é um conceito encontrado dentro da Riqueza das Nações de Smith e que se popularizou na economia política para caracterizar a autorregulação do mercado. A defesa seria de que os interesses privados dos indivíduos proporcionam benefícios públicos e regulariam as relações interpessoais, de maneira que a sociedade tenda para uma harmonia social e, assim, se negue a existência de qualquer conflito entre classes. No entanto, a metáfora da mão invisível também pode ser interpretada como uma forma de invisibilidade que oculta as desigualdades e injustiças estruturais do sistema neoliberal, permitindo que os interesses corporativos e financeiros dominem em detrimento do bem-estar social. Dessa forma, o Estado deveria ser reduzido ao mínimo possível, como explica Smith:

De acordo com o sistema de liberdade natural, o soberano só tem três tarefas a atender; três tarefas de grande importância, de fato, mas simples e inteligíveis ao entendimento comum: primeiro, a tarefa de proteger a sociedade da violência e invasão de outras sociedades independentes; segundo, a tarefa de proteger, tanto quanto possível, todo membro da sociedade da injustiça ou opressão de qualquer outro de seus membros, ou a tarefa de estabelecer uma exata administração da justiça; e terceiro, a tarefa de erigir e manter certas obras públicas e instituições públicas que nunca seria do interesse de nenhum indivíduo, ou pequeno número de indivíduos, erigir e manter, porque o lucro nunca pagaria a despesa a qualquer indivíduo ou pequeno número de indivíduos, se bem que frequentemente façam mais do que compensar para uma grande sociedade. (SMITH, 2017)

Isto quer dizer que o Estado, na visão de Smith, deveria ser reduzido a três atribuições básicas:

1. Defesa – através da polícia e forças armadas.

2. Contratos – para o estabelecimento da justiça através dos contratos civis.

3. Administração – através do sistema público burocrático.

Posteriormente, com o surgimento do neoliberalismo no século XX, temos uma intensificação das regras do mercado sobre o poder político. Medidas de austeridade são a norma, e o mercado financeiro ganha cada vez mais força. As empresas dominam o legislativo com seus lobistas e se aumentam as medidas econômicas que beneficiam o sistema bancário. O bem-estar social diminui e o Estado perde o domínio sobre as decisões socioeconômicas. O intuito deste trabalho é utilizar a metáfora da invisibilidade para demonstrar que a regulação invisível do mercado é um mito e que o indivíduo quando é livre para agir como quiser irá buscar benefícios que, na maioria das vezes, não irá proporcionar ganhos coletivos.

A teoria da «mão invisível», proposta por Adam Smith em sua obra «A Riqueza das Nações», é um dos conceitos fundamentais do liberalismo econômico e tem implicações significativas para o nosso tempo. Smith argumentou que, em um mercado livre e competitivo, as decisões individuais dos agentes econômicos, motivadas por seu próprio interesse pessoal, são direcionadas por uma força invisível que promove o equilíbrio e o bem-estar social. Essa «mão invisível» seria capaz de coordenar as atividades econômicas de forma eficiente, reduzindo o papel do Estado e garantindo o crescimento econômico e a alocação adequada de recursos.

No contexto contemporâneo, a ideia da «mão invisível» tem sido frequentemente associada ao neoliberalismo, com seus princípios de livre mercado e minimização da intervenção estatal na economia. Defensores do neoliberalismo argumentam que a livre atuação dos agentes econômicos, orientados por seus próprios interesses, leva a resultados ótimos para a sociedade como um todo. No entanto, é importante questionar as implicações éticas dessa visão. A teoria da mão invisível pode criar a percepção de que as forças de mercado, por si só, são capazes de corrigir todas as desigualdades e problemas sociais. No entanto, a realidade demonstra que as desigualdades persistem e muitas vezes são exacerbadas pelo neoliberalismo.

Além disso, a ênfase na busca do interesse próprio pode levar a práticas predatórias e injustas, onde a ética e a responsabilidade social são negligenciadas em prol do lucro individual. A competição acirrada pode gerar externalidades negativas, como a exploração dos recursos naturais, a precarização do trabalho e a exclusão social. Nesse sentido, é essencial considerar as limitações da teoria da mão invisível e buscar um equilíbrio entre a liberdade econômica e a responsabilidade social. A ideia de que as forças de mercado, por si só, garantirão o bem-estar coletivo pode ser uma ilusão perigosa. É preciso um olhar crítico sobre as consequências que a lógica neoliberal acarreta para a sociedade e desconfiar de alternativas que promovam um desenvolvimento sustentável e inclusivo, pois, na maioria das vezes estão incluídas dentro de uma ótica de mercado.

Os limites da invisibilidade

Embora a invisibilidade possa ser considerada um poder desejável em muitos aspectos, existem limites claros para sua aplicação ética. No mito de Gyges, mesmo com o anel, ele não era verdadeiramente invisível aos deuses, que podiam ver suas ações e julgá-lo. Assim como o lógos que conta o mito nos permite “ver” os feitos de Gyges através da narrativa de Gláucon. De acordo com Gláucon, o que parece estar sendo posto em xeque aqui não é o justo por si mesmo apenas, mas a possibilidade desse homem justo existir, pois se a natureza humana é voltada para a pleonexía e tem como um bem o ato de cometer injustiças para sua satisfação pessoal, então o justo por si mesmo não poderia existir e, se existisse, não poderia ser feliz, já que a justiça por si mesma é penosa e não desejada como um bem por si mesma. Dessa forma, ainda segundo o parecer deles, a injustiça no seu mais completo estado é o tipo de vida mais feliz e, assim, não pode estar a felicidade relacionada à justiça por si mesma, mas somente às suas recompensas, pois são estas que trazem os benefícios da vida justa. O completamente injusto, para atingir o bem desejado, terá de conseguir o poder da invisibilidade contada no mito do anel. Dessa forma, deve ter uma arte que o permita produzir uma aparência de justiça, utilizando-se da persuasão e da violência para atingir este fim. Esta maneira de agir é própria do tirano e quando um indivíduo desses consegue atingir o poder, instaura como governo a tirania.

Da mesma forma, no contexto neoliberal, as ações invisíveis dos poderosos têm impactos visíveis nas desigualdades sociais, no esgotamento dos recursos naturais e na degradação do meio ambiente. A invisibilidade dos processos econômicos e políticos obscurece as relações de poder e dificulta a responsabilização dos responsáveis pelas consequências negativas de suas ações. A metáfora da invisibilidade, tanto no mito do anel de Gyges quanto na ideia da mão invisível de Adam Smith, levanta a questão crucial dos limites éticos e morais da ação humana. Embora a invisibilidade possa parecer um poder irresistível, é fundamental reconhecer que existem limites para o que pode ser considerado aceitável em termos de conduta e responsabilidade social.

Uma das principais preocupações com a invisibilidade é a falta de prestação de contas. Quando uma pessoa ou uma instituição age de forma invisível, sem ser observada ou responsabilizada, há uma ausência de transparência e de mecanismos de controle. Essa ausência de prestação de contas pode levar a abusos de poder, corrupção e comportamentos antiéticos típicos de um tirano. Além disso, a invisibilidade pode permitir que se ignore as consequências negativas de nossas ações sobre os outros e sobre o meio ambiente. Quando não somos visíveis, é mais fácil distanciar-nos das ramificações éticas e morais de nossas escolhas. Isso pode levar a uma desconexão em relação às consequências destrutivas que nossas ações podem ter, tanto em nível individual quanto em nível coletivo. Como diz Leff:

O ambiental aparece como um campo de problematização do conhecimento, que induz um processo desigual de internalização de certos princípios, valores e saberes “ambientais” dentro dos paradigmas tradicionais das ciências. Este processo tende a gerar especialidades ou disciplinas ambientais, métodos de análise e diagnóstico, assim como novos instrumentos práticos para normatizar e planejar o processo de desenvolvimento econômico sobre bases ambientais. Entretanto, esta orientação “interdisciplinar” referente a objetivos ambientais não autoriza a constituição de um novo objeto científico – o ambiente – como domínio generalizado das relações sociedade-natureza. (LEFF, 2001, p. 72)

Outro aspecto dos limites da invisibilidade é a necessidade de considerar o impacto de nossas ações na comunidade e na sociedade como um todo. Quando estamos invisíveis, é fácil negligenciar o impacto que temos sobre os outros e agir exclusivamente em busca de nossos próprios interesses. Isso pode resultar em desigualdade, injustiça social e no enfraquecimento do tecido social que sustenta a coesão e o bem-estar de uma comunidade.

A invisibilidade também tem limites nas práticas de mercado que prejudicando a coletividade, proporcionando benefícios para poucos, o que resulta em uma perda da conexão com nossos próprios valores éticos estabelecidos em sociedade. Nesse sentido a perda da invisibilidade se dá justamente devido aos limites sociais impostos. Uma sociedade corrompida pela busca incessante de benefícios privados, como na anedota da Fábula das abelhas de Mandeville.

A invisibilidade perdida

A busca implacável pelo interesse próprio e pelo lucro no neoliberalismo tem levado a uma invisibilidade moral, onde as relações sociais são reduzidas a transações econômicas e os valores humanos são subordinados aos interesses financeiros. A perda da visibilidade e da responsabilidade social tem levado a uma crise de confiança nas instituições e a uma erosão do tecido social, enfraquecendo o contrato social que sustenta a coesão e a estabilidade da sociedade. No contexto do mito do anel de Gyges e da metáfora da invisibilidade na era neoliberal, surge a questão intrigante da «invisibilidade perdida». Embora a invisibilidade possa conferir poder e liberdade, sua perda pode trazer consigo uma série de desafios e consequências imprevistas.

Uma das consequências da invisibilidade perdida é a exposição aos olhos do público e a necessidade de prestação de contas. Quando ações anteriormente encobertas são reveladas, aqueles que as praticaram enfrentam a possibilidade de julgamento e responsabilização por suas ações. Esse processo de exposição pode gerar repercussões sociais, legais e morais que impactam a reputação e o status daqueles envolvidos.

Além disso, a invisibilidade perdida pode revelar as desigualdades e injustiças que estavam ocultas sob a superfície. Quando ações anteriormente invisíveis vêm à tona, a atenção é direcionada para as disparidades de poder, privilégio e acesso aos recursos. A perda da invisibilidade pode trazer à tona questões sociais urgentes e desencadear movimentos de luta por justiça e equidade. Outro aspecto da invisibilidade perdida é a necessidade de confrontar as consequências destrutivas de ações anteriores. Quando ações realizadas na invisibilidade vêm à tona, pode ser necessário reparar danos causados a indivíduos, comunidades e ao meio ambiente. Esse processo de reparação pode exigir esforços significativos para lidar com as consequências éticas de ações passadas.

A perda da invisibilidade acontece devido ao próprio processo de agir invisivelmente. Ou seja, quando uma ação visa benefício próprio que não traz como consequência um benefício público, mas justamente o contrário como crise financeira, inflação e desregulação social. A justiça só vale a pena se puder ser comprovada como natural, pois, do contrário, ela se torna uma obrigação que não será cumprida em caso de invisibilidade. Segundo Gláucon na República, o problema é que a liberdade total não permitiria aos homens construírem uma comunidade, pois cada um levaria em conta somente o que é seu e poderiam vir a prejudicar uns aos outros. O anel de Gyges é o retorno do poder do desejo que ultrapassa até mesmo o contrato estabelecido socialmente. Dessa forma, o tirano se instala no governo. E por que o tirano? A tirania se constitui quando um homem detém todo o poder e faz dos cidadãos seus escravos. O tirano é o completamente injusto e controla a justiça, fazendo com que os governados cumpram a lei, enquanto ele mesmo não é obrigado a cumprir, pois é o próprio legislador e faz as leis em benefício próprio. Entendemos que o contrato proposto por Gláucon contribuirá para a sua tentativa de defender o governo injusto, ao atrelar ao completamente injusto a aparência da justiça, enfatizado quando ele diz que o suprassumo da injustiça é «[…] parecer justo sem o ser» [δοκεῖν δίκαιον εἶναι µὴ ὄντα] (Rep., 361a5). Nisso consiste o poder do tirano.

A exposição de práticas e estruturas injustas pode criar uma conscientização coletiva e uma demanda por mudanças sistêmicas. A sociedade pode buscar reformas políticas, regulatórias e institucionais para lidar com as questões éticas que foram trazidas à luz. Aqueles que antes agiam na invisibilidade podem ser confrontados com a necessidade de avaliar suas próprias escolhas, valores e princípios. Esse processo pode levar a uma reavaliação da ética pessoal, resultando em mudanças de comportamento e uma maior consciência das consequências de nossas ações.

Conclusão

O mito do anel de Gyges e a metáfora da invisibilidade permeiam questões fundamentais sobre ética, responsabilidade e as dinâmicas sociais. Ao explorar esses conceitos, juntamente com a teoria da mão invisível de Adam Smith, podemos entender melhor as implicações éticas e morais do neoliberalismo e refletir sobre os limites da ação humana. O que nos lembra que a invisibilidade, seja literal ou metafórica, pode despertar desafios éticos. Quando nos tornamos invisíveis, podemos ser tentados a agir sem restrições, em busca de nossos próprios interesses, ignorando as consequências para os outros e para o bem comum. Essa falta de prestação de contas e responsabilidade social representa uma ameaça para a justiça e a equidade.

A teoria da mão invisível de Adam Smith, por sua vez, propõe que a busca do interesse próprio nos mercados livres e competitivos levará naturalmente ao bem-estar social. No entanto, essa visão deve ser confrontada com as limitações e os efeitos colaterais do neoliberalismo. A ênfase excessiva no individualismo pode gerar desigualdades sociais, injustiças e degradação ambiental. Os limites da invisibilidade nos fazem questionar até que ponto nossas ações podem ser consideradas aceitáveis ética e moralmente. A falta de prestação de contas, a desconexão das consequências negativas e a negligência das obrigações sociais podem minar os fundamentos de uma sociedade justa e solidária. No entanto, a invisibilidade perdida traz consigo uma série de desafios e oportunidades. A exposição das ações anteriormente invisíveis pode gerar a necessidade de prestação de contas, reparação e mudanças sistêmicas. Além disso, a perda da invisibilidade oferece uma oportunidade para a reflexão pessoal e a transformação, incentivando uma maior consciência ética e uma busca por ações alinhadas com nossos valores mais elevados.

Diante disso, é fundamental reconhecer a importância de um debate ético contínuo na esfera pública e nas instituições. Devemos promover uma cultura de responsabilidade, transparência e prestação de contas, que considere as implicações éticas e morais de nossas ações individuais e coletivas. A busca por uma sociedade mais justa, equitativa e sustentável exige que confrontemos os desafios e limites da invisibilidade, reconhecendo a importância de uma ética que vá além do interesse próprio. Em última análise, ao refletir sobre a invisibilidade perdida e suas conexões com o mito de Gyges e o neoliberalismo, somos convidados a repensar nossas relações com o poder, a responsabilidade e a ética. Somente através de uma abordagem consciente e crítica, podemos buscar soluções que equilibrem o respeito aos valores individuais com a promoção do bem comum, garantindo uma sociedade mais justa para todos.

Referências Bibliográficas

CHANTRAINE, P. Dictionnaire Étymologique de La Langue Grecque. Histoire de Mots, tomes I-IV. Paris: Éditions Klincksieck, 1968-80.

LEFF, Enrique. Epistemologia Ambiental. São Paulo: Cortez Editora, 2001.

LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. Greek-English Lexicon (2 ed.). New York: Harper & Brothers, 1883.

MANDEVILLE, Bernard. A fábula das abelhas: ou vícios privados, benefícios públicos. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2017.

MENEZES, L. M. B. R. O Desafio de Gláucon: A Tirania Invisível na República de Platão. Curitiba: Appris Editora, 2018.

MENEZES, L. M. B. R. Nova interpretação da passagem 359d da República de Platão. Kriterion, v. 125, p. 29-39, 2012.

MENEZES, L. M. B. R. O governo do filósofo. Journal of Ancient Philosophy, v. 13, n. 1, p. 40-73, 2019.

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PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 9.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

SLINGS, S. R. Platonis Rempvblicam, recognovit brevique adnotatione critica instrvxit: S. R. Slings. Oxford: Oxford University Press, 2003.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. (Ebook)


NOTAS

* Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes. Doutor em Filosofia (UFRJ). Professor de Filosofia Política, Tecnologia e Educação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (IFTM).

[1] PLATÃO. República, 359c1-360b3.Para a tradução, utilizaremos o texto de Maria Helena da Rocha Pereira, A República (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001). Tomaremos esta tradução como base para nosso trabalho, avisando quando usarmos outras traduções. Demais referências à ‘República’ serão abreviadas por Rep. indicando-se em seguida a numeração. Para o original grego em todo o trabalho, utilizaremos o texto estabelecido por S. R. Slings, Platonis Rempvblicam (Oxford: Oxford University Press, 2003).

[2] Há uma dificuldade da passagem 359d1, onde podemos ler τῷ Γύγου τοῦ Λυδοῦ προγόνῳ (ao antepassado do Lídio Gyges). Iremos resolver essa dificuldade em Menezes (2012). Em resumo, seguimos a explicação de Slings que assim coloca como sendo a passagem original: Γύγῃ τῷ Λυδῷ. Dessa forma, entraria em harmonia com a passagem 612b, mantendo Gyges como único possuidor do anel no texto platônico, assim como também estaria de acordo com a posterior inclusão dos termos τῷ e προγόνῳ sem prejuízo para a interpretação da passagem 359d. Feitas as modificações, o texto poderia ser assim traduzido: “terem a faculdade que se diz ter sido concedida a Gyges, o Lídio” ou com a posterior inclusão dos termos “ao antepassado lídio, Gyges”. Mais sobre o assunto, ver Menezes (2018).

[3] Rep., 359c1-360b3. As modificações na tradução são nossas.

[4] Segundo LIDDELL, H. G.; SCOTT, R. op. cit., p. 1224; a palavra πλεονεξία pode significar também ganância, apego, arrogância, vantagem, abundância. De acordo com CHANTRAINE, P. op. cit., tome III, 1979, p. 913; a palavra pertence a família de πλε(ῖ)ον, que compõe πλεονέκτης “ganancioso, que tem mais do que os outros” com -εκτέω, -έκτημα, -εξία, etc., cf. s.u. ἔχω. Entendemos que a palavra tem um significado amplo e que quer dizer um desejo de ter mais do que os outros.

Ariadna Tucma Revista Latinoamericana. Nº 13/14. Marzo 2019 – Diciembre 2022

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