A mentalidade colonial em liquidação”: Guerreiro Ramos e a temática nacionalista nos anos 1950 -1960.

Elisabeth Juliska Rago*

Alberto Guerreiro Ramos. 1915-1982

Resumo

O artigo contextualiza o momento em que nasce a ideologia nacional-desenvolvimentista no Brasil, nos anos 1950 e 1960. Um grupo de intelectuais enfrentou o desafio de interpretar o Brasil à luz da “fase” de desenvolvimento industrial, condição de superação do subdesenvolvi-mento, da mentalidade colonial, da dependência e da pobreza. Dentre os pensadores que participaram da elaboração da ideologia nacional-desenvolvimentista, destaca-se a figura de Alberto Guerreiro Ramos como formulador de uma sociologia nacional, entendida como sendo um “saber de salvação.”

Palavras-chave:  ideologia nacional-desenvolvimentista, sociologia nacional, consciência crítica

Abstract

The paper aims to contextualize the time when the national-developmentalist ideology was born in Brazil, in the 1950s and 1960s. A group of intellectuals sets the goal of interpreting Brazil under the light of the then current “phase” of industrial development, a pre requisite to overcome underdevelopment, the colonial mentality, dependence and poverty. Among the scholars of this group, the figure of Alberto Guerreiro Ramos stands out as formulator of a national sociology, understood as being a “knowledge of salvation.”

Key words: national-developmentalist ideology, national sociology, critical conscience

Os anos de 1950 e 1960 presenciaram um intenso movimento de ideias, mais precisamente, a gestação de um ideário nacional-desenvolvimentista concebido por intelectuais cariocas e paulistas. O grupo era formado por estudiosos como Hélio Jaguaribe, Alberto Guerreiro Ramos, Roland Corbusier, Cândido Mendes, Ignácio Rangel, Álvaro Vieira Pinto, Nelson Werneck Sodré, Wanderley Guilherme dos Santos, entre outros. No Simpósio Guerreiro Ramos: resgatando uma obra, em homenagem póstuma a Guerreiro Ramos, Rangel afirma que “era preciso retomar o debate interrompido completamente, dez ou vinte anos antes […] com homens especiais para fazer isso, porque, na realidade estávamos reatando, reencetando o diálogo interrompido e no qual pouco depois, o país inteiro estaria envolvido.” (RANGEL: 1973:73) De fato, no decorrer dos anos 1950 verificou-se a ascensão do nacionalismo-desenvolvimentista no país.

A ideologia nacional-desenvolvimentista originou-se no Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política – IBESP, como um centro de intelectuais, vinculado ao Ministério da Agricultura. Dentre as atividades desenvolvidas pelo “Grupo de Itatiaia”, como eram então chamados, empenham-se na criação da revista “Cadernos do Nosso Tempo”, em 1953, num total de cinco volumes, contendo artigos sobre a “crise brasileira”, o significado do nacionalismo, a crítica do comunismo, ensaios sobre a superação do subdesenvolvimento do país periférico, além de artigos analisando a realidade brasileira.

As teorias sociológicas, políticas e econômicas contribuiriam para a formulação da ideologia nacionalista possibilitando uma interpretação do Brasil adequada para forjar consciências autenticamente nacionais. A consciência crítica conduziria o processo político superando o colonialismo, a dependência em relação aos centros hegemônicos.  Na perspectiva de Guerreiro Ramos, havia uma contraposição entre o país velho e o novo, a consciência colonial e a mentalidade autenticamente nacional, propiciada pelo desenvolvimento industrial capitalista. (Guerreiro Ramos, p. 68)   A industrialização teria como consequência a urbanização e o consumo popular, forças capazes de extinguir o atraso brasileiro. Não obstante essa intelectualidade não compartilhasse das mesmas ideias e opções políticas, pode-se afirmar que se tratava de uma “intelligentsia” disposta a orientar os rumos do desenvolvimento.

Posteriormente, em 1955, julgando necessária a ampliação do alcance político das propostas de desenvolvimento em bases nacionais e a formação de quadros dirigentes, surge o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, ISEB, o qual foi extinto em 1964. O ISEB, a partir de condições de trabalho mais favoráveis, segundo Hélio Jaguaribe, visava ao “estudo de políticas implementáveis” no país. É importante lembrar que a preparação do Plano de Metas, ainda nas palavras de Jaguaribe, foi inicialmente obra do ISEB.

Nesse sentido, Jaguaribe, também participando do Simpósio realizado no Rio de Janeiro, explica que havia uma relação entre o ISEB e o Governo Kubitschek,” … que, “na verdade implementou o processo de desenvolvimento”, porém, segue explicando que “é preciso fazer uma distinção entre uma “intelligentsia” e uma tecnocracia”. Esse núcleo de intelectuais não pretendia se tornar tecnocratas.

Helio Jaguaribe. 1923-2018

Esta breve contextualização do cenário nacional teve como objetivo mostrar o surgimento da ideologia nacional-desenvolvimentista, enquanto projeto de totalidade, contando com o apoio científico e a interdisciplinaridade, visando a alcançar a elaboração de uma teoria global da sociedade brasileira. A seguir, faremos uma breve apresentação da trajetória do sociólogo Guerreiro Ramos.

Pretendemos resgatar alguns aspectos da obra sociológica deste importante pensador baiano, negro, nascido em Santo Amaro da Purificação, em 1915 e falecido em Los Angeles, onde lecionava na Universidade do Sul da Califórnia, em 6 de abril de 1982, aos 67 anos de idade. Sua trajetória de vida aponta para um homem aberto ao social. Crítico e irreverente, sua vivência o obrigou a reinventar-se, constantemente, diante das ambivalências, dos racismos e dos preconceitos ainda hoje vigentes na sociedade brasileira.

Diante da tarefa “revolucionária” de modernização do país, no caso específico do sociólogo baiano, a questão que se colocava era a opção por uma estratégia para acelerar o processo real de industrialização capitalista. Para isso, ele julgava necessário forjar um movimento de ideias, cujo objetivo principal seria dotar as características sociais brasileiras da consciência social nacionalista. A consciência crítica haveria de se materializar na organização do povo, na racionalidade produtiva e na eficiência política através da reorganização administrativa do Estado.

Escapa aos objetivos deste artigo a elaboração de um perfil biográfico de Guerreiro Ramos, entretanto, sua trajetória de vida e a profissional devem ser vistas conjuntamente, na medida que acreditamos que isto possa lançar luzes sobre suas proposições ideológicas. 

Álvaro Vieira Pinto. 1909-1987

A inclinação para a literatura, a poesia, a filosofia e a música revelaram-se desde a sua juventude. Colaborando na imprensa, na primeira metade da década de 1930, Guerreiro Ramos escreve artigos para o jornal O Imparcial de Salvador sendo “uma espécie de crítico literário” (depoimento, p.3). Nessa época recebeu a influência da revista francesa L’ Esprit, fundada por Emmanuel Mounier. Mais tarde, o pensador baiano desloca-se para o Rio de Janeiro para fazer o curso de ciência sociais não mais retornando a sua terra natal. Dando continuidade à carreira de jornalista Guerreiro Ramos empresta sua colaboração, posteriormente, aos jornais Diário de Notícias, Última Hora, O Semanário e Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. Antes mesmo de interessar-se pelas ciências sociais, foi culturalmente influenciado por Rainer Maria Rilke, Rimbaud, Kierkegaard, Berdiaeff, Jacques Maritain, Gabriel Marcel. Seu primeiro livro, O drama de ser dois foi publicado em 1937, quando contava 22 anos e foi dedicado a Nikolai Berdiaeff. Segue-se a publicação de Introdução à Cultura. O gosto pela leitura o levou a colecionar muitos livros dos mais variados autores. “Através de 19 Berdiaeff eu desenvolvi uma certa paixão pelos escritores russos: Soloviev, Tolstoi, Turgueniev, Tchecov, Dostoievski, que eu li muito. Nessa primeira fase, eu era um pensador russo”. Ao que parece, encontrando dificuldades financeiras Guerreiro Ramos ensinava matemática para filhos de famílias abastadas; “Eu sou professor desde os 14 anos de idade. Era professor dos meus colegas, ganhava dinheiro” (depoimento, p. 44), o que lhe garantia a compra de livros. Em sua entrevista ao CPDOC, Guerreiro Ramos esclarece que, naqueles anos da década de 1930, “Nós falávamos em Heidegger, antes de o resto do Brasil falar. Jaspers … Nós lançamos isso na Bahia. Nós tínhamos acesso direto. Antes de o Rio de Janeiro falar nas coisas, nós falávamos. Éramos eu e o Afrânio Coutinho, com quem não me dou hoje; briguei com ele” (Depoimento, p.8). Lúcia Lippi de Oliveira, em seu estudo Caminhos Cruzados: trajetória individual e geração (1988) afirma que “A década de 1930 assiste a um interesse pela cultura negra, manifestado tanto por intelectuais comprometidos com o movimento comunista, como também por outras figuras dedicadas a estudos mais ‘acadêmicos’”. Nesse campo de considerações, a autora afirma que o I Congresso Afro-Brasileiro foi realizado no Recife (1933), organizado por Aydano de Couto Ferraz e Édison Carneiro. “A Bahia era considerada o campo de observação por excelência dos contatos entre brancos e negros”, afirma (Depoimento) Embora Guerreiro Ramos vivesse em Salvador nestes anos, segundo Lippi, fora conduzido por motivos de outra ordem, a engajar-se, nesta ocasião, no movimento integralista. Percebe-se que a formação de Guerreiro Ramos é católica, tendo sido educado por um padre dominicano, Dom Bederkekaiser e que, segundo o autor, foi quem traduziu o primeiro missal do latim para o português. “Estudei profundamente o tomismo, quando tinha uns 19 anos, 20 anos, através do Curso de Filosofia do Maritain, li várias vezes aquele compêndio” (depoimento, p.5). José Arthur Rios, condiscípulo de Guerreiro Ramos, além de Luiz Costa Pinto na Faculdade de Filosofia, afirma ter o sociólogo baiano atravessado “mutações intelectuais”, bem como uma “crise de fé”. Sobre as opções teóricas do sociólogo baiano, afirma que, “Enquanto outros sociólogos brasileiros, como Antônio Cândido trocavam a Sociologia pelo ensaísmo ou pela crítica literária, Guerreiro Ramos empreendeu a démarche inversa” (Simpósio Guerreiro Ramos, p.121). No final dos anos 1930, participou da organização da Faculdade de Filosofia da Bahia, ao lado de Isaías Alves, irmão do governador Landulfo Alves. Nas suas palavras, “uma das ironias da minha carreira é que eu me tornei um catedrático de sociologia sem ter nem mesmo o primeiro ano de ciências sociais” (depoimento, p.2 ).  O curso de Ciências Sociais foi concluído no Rio de Janeiro, na então Universidade do Brasil, em 1942. No ano seguinte concluía o curso de direito, na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Assim sendo, o bacharel Guerreiro Ramos, por outra “ironia” lecionou, em seu exílio nos Estados Unidos, na escola de administração pública da Universidade do Sul da Califórnia, orientando estudantes para Ph.D, sem ter, ele próprio o Ph.D. Seja como for, o autor nunca valorizou a academia e indagava sobre a possibilidade de se formar um filósofo na escola.

Nomeado para o serviço público em 1943 como técnico de administração do DASP, aí permaneceu por aproximadamente vinte anos. Publicou um ensaio de Sociologia do Conhecimento, elaborado para o concurso do DASP, intitulado Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho, pela editora do DASP, em 1950 e vários estudos na Revista do Serviço Público, incluindo um artigo sobre Max Weber no Brasil, tendo lido os livros do autor alemão no original. Ele reconhece a marcante influência daquele sociólogo no seu pensamento: “Max Weber é outra grande influência sobre mim, junto com Durkheim, Mannheim…” (depoimento, p.16). Através da leitura de Max Weber, Guerreiro Ramos, como consequência, aprofunda seus conhecimentos de Sociologia e se dispões aos estudos de Economia e Teoria da Organização. Dedica-se também ao estudo da sociologia norte-americana, porém, mais tarde irá combatê-la. O autor foi um dos fundadores da Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (EBAD) ,em 1952, aí lecionando a cadeira de Sociologia até o momento de sua cassação. O livro Administração e Estratégia do Desenvolvimento foi publicado pela Editora da FGV, em 1966. Em 1951, Guerreiro Ramos, sem ter deixado o DASP, atua na Casa Civil da Presidência da República, como assessor Conselho de Desenvolvimento do Ministério de Viação e Obras Públicas, ao lado de Rômulo de Almeida, chefe da assessoria econômica de Getúlio Vargas, além de Jesus Soares Pereira e Ignácio Rangel. Ao que parece o interesse pela coisa pública, mais precisamente, pelo modus operandi do governo brasileiro decorre dessa experiência na assessoria na Casa Civil. “Foi por esse tempo que começou também o seu namoro com o trabalhismo e com uma ideologia da negritude que, até então, não parecera levar muito a sério”, observa José Arthur Rios (Simpósio…p.122).

Em 1950, meditando sobre a questão racial no Brasil, Guerreiro Ramos anima-se a fazer uma revisão da literatura sobre o assunto, levado pela necessidade de verificar em que medida o negra seria um problema na sociedade brasileira ou na sociologia formulada do ponto de vista da patologia do branco. Assim sendo, participa ativamente do I Congresso do Negro Brasileiro organizado pelo Teatro Experimental 23 do Negro, em 1950, no Rio de Janeiro, ao lado de Abdias do Nascimento, de quem se tornara muito amigo. Apresenta neste congresso um trabalho que será publicado em Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (1975), intitulado Esforços de Teorização da Realidade Brasileira politicamente orientado de 1870 a nossos dias”.

Tecendo algumas considerações sobre a sociologia do negro em Guerreiro Ramos, Simon Schwartzman afirma: “O que Guerreiro Ramos propõe em troca é uma sociologia do negro feita pelo próprio negro, a partir da assunção de sua condição racial, a partir de uma tomada de consciência de sua negritude. Essa proposta de Guerreiro Ramos antecede em décadas a difusão de uma atitude militante dos intelectuais negros do país, ainda que seja contemporânea, e sem dúvida inspirada na defesa da negritude que então surgia na África francófona, e que tinha sua contrapartida no Brasil, no Teatro Experimental do Negro, com o qual Guerreiro Ramos mantinha contatos próximos” (Simpósio, p.32). Segundo Muryatan Barbosa, em recente publicação, afirma: “Fato é que, querendo ou não, o estigma racial o acompanhou por toda a vida, antes e depois da sua integração ao Teatro Experimental do Negro (TEN), entre 1949 e 1955, período em que produziu a maior parte dos seus escritos sobre a temática étnico-racial reunidos nesta coletânea. Ressalta que, “Mesmo nos anos 1950, quando já era alguém nacionalmente conhecido, foi publicamente atacado como ‘malandro’, ‘preto racista’, ‘cafuzo racista’, ‘negro e racista’”. (Barbosa, 2023, p.17). Concordamos com o historiador que estas publicações desairosas na imprensa do Rio de Janeiro a respeito do sociólogo, o tenham motivado a se afastar do Teatro Experimental do Negro desde 1956. (p.17)

O interesse de Guerreiro Ramos pelos problemas brasileiros amplia-se consideravelmente nos anos cinquenta, fazendo com que ele percebesse as mudanças ocorridas no Brasil, em particular depois de 1930, marco teórico de suas reflexões sobre o sistema político-institucional, privilegiando o processo de industrialização e urbanização nas reflexões sobre o Brasil num período marcado por mudanças no sistema produtivo que tiveram, consequentemente , o quadro político e social brasileiro modificado dos anos de 1930 em diante. O sociólogo participa ativamente da direção do departamento de Sociologia do ISEB, ministrando cursos e conferências sendo escolhido para ministrar a conferência inaugural do ISEB, A Realidade da Problemática Brasileira, em 1955. Nesse estudo o autor discorre sobre o “impasse” vivido entre a sociedade moderna e a sociedade arcaica, esta última caracterizada por uma organização político-social totalmente ultrapassada e comprometida com soluções de tipo clientelístico ainda vigentes, carecendo de uma forma de organização político-institucional que correspondesse à fase do desenvolvimento capitalista industrial.

Por ora, tentaremos reconstituir alguns momentos importantes do pensamento de Guerreiro Ramos, configurando a especificidade da sociologia nacionalista de acordo com o autor, enfatizando que a sociologia nacional ocupava um lugar privilegiado no interior de seu projeto ideológico. A obra fundamental sobre o tema intitula-se A redução sociológica, já em sua terceira edição de 1996. Considerava ele que, desprovido o país de uma cultura nacional autêntica, dada a fragmentação teórica gerada pela incapacidade de uma contínua reflexão sobre os problemas concretos da sociedade brasileira, era necessário formular “de modo dinâmico as categorias do pensamento sociológico brasileiro, dando nome às forças e tendências ínsitas na realidade nacional” (RAMOS, 1954 , p.89)

Guerreiro Ramos explica a irrealização de uma identidade nacional no período pré-industrial, pela ausência de fatores reais; a industrialização capitalista e suas consequências; a urbanização e as transformações no consumo popular, que teriam impedido a formação da identidade nacional. Da colônia não poderia emanar uma cultura autenticamente brasileira, na medida que um dos traços característicos do Brasil seria, justamente a ausência de uma tradição cultural. O panorama brasileiro desenhava-se como sendo o de uma sociedade em branco, um povo sem história. Em virtude das condições históricas do país, formado por colonização, a nação brasileira teria sido uma ficção jurídica, e, portanto, desprovida de uma cultura nacional, enquanto “conjunto de produtos materiais e não materiais resultante da atividade transformadora dos povos, mediante o quais se exprime uma ideia interpretativa do homem e do mundo” (RAMOS, 1960, p. 242)

No entender de Guerreiro, não há cultura genuinamente nacional num país regido pela lógica da situação colonial. (neocolonialismo) O conceito de situação colonial corresponde a “um complexo, uma totalidade que impõe certo tipo de evolução e de psicologia coletiva às populações colonizadas” (RAMOS, 1957, p. 18)

Nos países periféricos, em virtude das características resultantes da subordinação econômica aos centros metropolitanos, os estudos sociológicos, salvo raras exceções, refletiam a situação de dependência do país aos centros metropolitanos.

A situação colonial corresponderia a mentalidade colonial ou reflexa, na medida em que todos os aspectos do real participariam deste “fenômeno social total, que, em essência, consiste na alienação” (RAMOS, 1958, P. 134).  A categoria de alienação refere-se aos estudos sociológicos que, de modo geral, não tem por objetivo a promoção da autodeterminação da sociedade brasileira. O autor utiliza a palavra “alienação” como antônimo de autodeterminação nacional.

Assim se compreende que o sociólogo baiano integre o complexo colonial à totalidade do subdesenvolvimento, no qual “à exploração se aliam outras formas complementares de dependência, como a assimilação, a aculturação, a associação”. Ademais, num país subordinado aos centros metropolitanos, a forte influência ideológica não permitiria a formação de um pensamento autêntico, ou, “em estreita correspondência com as circunstâncias particulares desses países”. (RAMOS: 1957, p.19) A categoria de autenticidade, emprestada à Filosofia da Existência, impregna a sociologia nacionalista de Guerreiro Ramos, expressando um significado particular no interior da sua sociologia política. O sociólogo afirma que “A essência da autenticidade é a apropriação do sujeito pelo próprio ser” o que significa dizer que, a partir do desenvolvimento capitalista industrial em curso no Brasil, o povo constituído como sujeito, passaria a fazer a sua própria história.

Para o sociólogo, a autenticidade do pensamento brasileiro só poderia ser alcançada pela ruptura com o subdesenvolvimento, isto é, pela modificação da estrutura econômico-social, o que abriria infinitas possibilidades ao país. O desenvolvimento industrial traria enormes benefícios à população com a elevação do seu padrão de vida, afigurando-se aos intelectuais engajados no seu contexto histórico-social, um papel relevante na formação de um pensamento autônomo em relação à cultura cosmopolita.

Da sua perspectiva, o que dá legitimidade à sociologia é a história, enquanto problemática da realidade nacional, sendo esta constituída pelos traços característicos que a especificam enquanto nação. É preciso ter em mente que Guerreiro Ramos segue a linha de interpretação da história colonial, segundo a qual o Brasil “não se recortava como um espaço histórico, capacitado para a auto-conformação” isto é, o sistema colonial colocava imensos obstáculos à acumulação de capital. Os brasileiros teriam uma vida imediatista, de escasso conteúdo projetivo, onde predominaria a consciência ingênua, e, nessa direção afirma que “A colônia é, por definição, instrumento da metrópole” (RAMOS, 1958, p. 71)

Dentro de lineamentos dessa ordem, importava verificar quais são os traços da situação colonial configurativos da sociologia dos contextos coloniais, que, criticamente, Guerreiro Ramos denominou sociologia consular, (inautêntica ou enlatada). Esta temática é constante em toda sua produção do período considerado pela nossa pesquisa. Ela aparece na publicação de uma conferência proferida no ISEB, em 1955, sob o título A Problemática da Realidade Nacional, sendo retomada em outros ensaios, incluindo sua obra publicada em 1966, Administração e Estratégia do Desenvolvimento, o que demonstra sua preocupação com os rumos da ciência social no Brasil.

Posto isto, vejamos, a seguir, quais são as categorias básicas conformadoras de uma teoria global da sociedade brasileira, explicitadas pelo autor e que representam as negatividades da situação colonial, traços que estariam dificultando a formação de uma identidade nacional: duplicidade, heteronomia, alienação, amorfismo e inautenticidade.

No seu pensamento, a duplicidadeexpressa uma lei básica, historicamente inevitável, da formação nacional. Desde a descoberta, o Brasil esteve sujeito a duas ordens de leis: “internamente as da etapa escravagista; externamente as da etapa capitalista” (PNB, p.22). Nesse sentido, aceita a teoria da dualidade, na forma pensada por Ignácio Rangel, mostrando que o fenômeno aparece em todos os períodos da história brasileira. Sob este prisma, o capitalismo brasileiro, no que se refere às relações externas, apresentaria um grau superior de desenvolvimento em relação ao desenvolvimento interno. Em “O problema nacional do Brasil, escreve que, “para efeito das relações externas, já alcançamos a etapa de capitalismo de Estado em que o mercado internacional passou a ser essencialmente público e monopolista, enquanto no interior o capitalismo nacional se desenvolve dentro de marcos privados e liberais” (p. 23) Porém, ao considerar as diversidades regionais internas do país, Guerreiro Ramos introduz o conceito de contemporaneidade do não coetâneo, (W. Pinder), isto é, todas as etapas do desenvolvimento da sociedade humana estariam presentes, desde o comunismo primitivo, escravidão, feudalismo, o capitalismo em todas as suas etapas (mercantil, industrial e financeiro) até o capitalismo de Estado. Todas essas características reunidas, explicaram o caráter transplantado da cultura e das instituições brasileira.

Precisemos, no entanto, a postura particular do sociólogo baiano frente à questão das transplantações culturais. Este fenômeno não representaria uma anomalia relativa à psicologia das elites intelectuais, como o vício da imitação ou complexo de inferioridade, tantas vezes ressaltado por autores apreciados por Guerreiro Ramos, como Alberto Torres ou Oliveira Vianna, tradição que busca aprimorar. No seu entender, a transplantação foi um acidente inevitável e não patológico da formação brasileira e que traria a marca da dualidade. Isto não significa uma “justaposição mecânica de duas sociedades”, referindo-se a Os Dois Brasis, de Jacques Lambert, mas, como mencionamos acima, uma lei básica da formação brasileira.

O sentido do termo mimesis, utilizado anteriormente por Toynbee significa, para o autor, “a adesão aos moldes culturais e tecnológicos de mais prestígio, resultando daí a heteronomia” (RAMOS, 1960, p.27). A categoria de heteronomiadeve ser compreendida como um traço resultante da situação global dos países formados por colonização. No seu modo de ver, “Uma colônia é um espaço, cujos habitantes globalmente considerados não existem <para si> (PNB, p.54). Utilizando outra expressão de Toynbee, afirma que, a população brasileira existe enquanto proletariado externo dos centros metropolitanos a que se vinculam. Nesse sentido, o país colonial não se articularia segundo critérios induzidos da própria realidade, mas “pela dinâmica de suas condições internas e externas(PNB, p.54), o que vem a ser designado de heteronomia. Dito de outro modo, o processo de industrialização brasileiro estaria ameaçado pelas forças internacionais, isto é, pelo capital estrangeiro, obstaculizador da consolidação de algumas atividades econômicas imprescindíveis para que o país atingisse a sua autonomia. Um exemplo da heteronomia seriam “as divisas gastas nas importações de bens secundários ou supérfluos por força da heteronomia do gosto e dos hábitos da população brasileira” (PNB, p.92). Desse modo, Guerreiro Ramos resgata autores tais como Paulino José Soares de Souza (1807 – 1866), o Barão de Mauá e, ainda, Pandiá Calógeras que, antes dele, teriam percebido o perigo a que estava exposta a industrialização brasileira.

Paulino José Soares de Souza. 1807-1866

A alienação (intelectual) significa que a sociedade brasileira estaria marcada pela dependência aos centros metropolitanos, não apenas no plano econômico quanto culturalmente. A que ressaltar, o autor privilegia em suas análises ou projeto do capitalismo autônomo. Guerreiro Ramos estabelece a distinção entre a visão alienada e a visão integrada do Brasil. Convicto da existência dessas duas perspectivas, critica a obra Retrato do Brasil (1928), de Paulo Prado, como modelo da visão alienada. Os Sertões (1901), de Euclides da Cunha, seria uma obra paradigmática da visão integrada, ainda que apresentasse erros de técnica científica, face aos limites da ciência social no período em que viveu. (RAMOS, 1960, P.93)

O que explica o amorfismo é o fato colonial como um fenômeno total, remetendo esta questão aos estudos de Roberto Fabregat Cuneo (Caracteres Sudamericanos, México, 1950), cuja descrição das sociedades sul-americanas, como sendo sociedades em branco, coadunam-se com as teses defendidas por Guerreiro Ramos. Segundo ele, “A história propriamente dita de um povo começa quando este povo se eleva à consciência”, entendida como autoconsciência coletiva, fato que explica a ausência de uma tradição cultural genuinamente brasileira.

Finalizando a caracterização da situação colonial, o autor afirma a inautenticidade da sociologia brasileira, “por pautar-se o país econômica, política, social e culturalmente por normas que não permitem a atualização de suas possibilidades e que vigoram à custa de contínua déficit de seu ser” (PNB, p.96). É interessante ressaltar que, segundo ele, a captura dos aspectos negativos presentes na sociologia brasileira, evidenciaram algo positivo, “é sintoma de que nela já existem os suportes objetivos de uma consciência crítica” (PNB, p.97). Evidentemente, Guerreiro Ramos se propõe a realizar a tarefa de interpretar sociologicamente a realidade brasileira, da perspectiva da consciência crítica. Nessa direção, ele irá reivindicar uma sociedade industrializada, moderna, cujos interesses nacionais seriam contrários aos de uma nação subordinada. Adverte que, “Esse contrário é o nosso projeto, em função do qual avaliamos a presente circunstância brasileira”. No contexto colonial a sociedade não poderia ter autoconsciência, ou seja, umacultura nacional. Para o autor, “Ordinariamente, nos países subdesenvolvidos o tipo rural de existência, dada a própria natureza das relações habituais dominantes em seu horizonte espacial, não favorece, em plenitude, a vida propriamente política. Esta surge somente a partir de certa densidade demográfica” (RS, p.35), ligada, evidentemente, às condições internas da produção industrial, as quais promovem a formação das aglomerações urbanas.

O projeto do sociólogo baiano tem como ponto de apoio as dimensões estruturais da realidade capitalista. Guerreiro Ramos afirmava de modo otimista que, “Se, (…) podemos descrever de modo crítico a velha sociedade, é porque estamos saindo dela e olhando-a do ponto de vista da sociedade nova”.  Fica evidenciado que o seu quadro de referência era o vigoroso surtode desenvolvimento urbano-industrial verificado no Brasil, na década de 1950. Desse modo, a crítica formulada à sociologia dos contextos coloniais gira em torno da cultura alienada dos países formados por colonização, sem uma perspectiva própria, em virtude do fato de que a ciência derivaria das transposições de conceitos, ideias e experiências dos países metropolitanos. Em vista disto, tanto na esfera política quanto na cultural, o Brasil refletiria a “alienação que afetava nossas relações de produção” (PNB, p.22), referindo-se o autor à forma de integração do país no sistema internacional de divisão do trabalho, enquanto produtor de bens primários. “A complementaridade, como fato social total, permeava todos os níveis de nossa existência” (PNB, p.22), frisa Guerreiro Ramos. Desse modo, as obras resultantes da imitação servil ou da transplantação literal das categorias da ciência estrangeira reproduziram formas de alienação. Há, porém, que se distinguir entre transplantação predatória e acelerativas sendo que as primeiras prejudicam “as disponibilidades de suas rendas em consumos descapitalizantes” e “as acelerativas contribuem para incrementar a velocidade da capitalização dos países periféricos” (CBAS, p.40). A CEPAL seria, para ele, um exemplo de transplantação acelerativa na área econômica.

É possível afirmar-se que o discurso cepalino exerceu acentuada influência sobre o pensamento de Guerreiro Ramos. A sociologia nacionalcorresponderia aos mesmos objetivos da CEPAL, no plano político-cultural. Guido Mantega resume bem o cerne da problemática dessa Instituição: “A preocupação básica da CEPAL era a de explicar o atraso da América Latina em relação aos chamados centros desenvolvidos e encontrar a forma de superá-los. Nesse sentido, a análise enfocava, de um lado, as peculiaridades da estrutura socioeconômica dos países da ‘periferia’, ressaltando os entraves ao ‘desenvolvimento econômico’, em contraste com o dinamismo das estruturas dos centros avançados; e, de outro lado centrava-se nas transações comerciais entre os parceiros ricos e pobres do sistema capitalista mundial que, ao invés de auxiliarem o desenvolvimento da periferia, agiam no sentido de acentuar disparidades”[1]. Não cabem, neste estudo, maiores desdobramentos acerca desta questão, bastando deixar o registro de que o sociólogo baiano, entendia dever a sociologia brasileira “ingressar nessa trilha” aberta (no setor econômico) pela Comissão Econômica para a América Latina (ICSB, p.97).

Nas condições particulares da formação social brasileira, em virtude dos “fatores reais nela operantes”, (industrialização nacional), estaria implícito um novo ponto de vista (cultura nacional). Neste sentido, Guerreiro Ramos articula a manifestação da consciência crítica às novas relações que se estabelecem na economia brasileira, como consequência da industrialização, ou, mais especificamente, no processo de urbanização. No que se refere à urbanização, o aspecto mais importante estaria referido à melhoria nos níveis de vida da população, resultantes daquele processo.

Julgava necessário forjar um movimento de ideias, cujo objetivo principal seria dotar as categorias sociais brasileiras (o povo) de consciência social nacionalista. A consciência crítica haveria de se materializar na organização do povo, desta maneira, o ele teria um papel indireto no processo de desenvolvimento, na racionalidade produtiva e na eficiência política através da reorganização administrativa do Estado. Estava interessado numa ampla mobilização popular que pudesse respaldar, do ponto de vista eleitoral, o projeto desenvolvimentista.

Isto posto, parece-nos que o autor não promoveu, nem de longe, uma ruptura ideológica com a ordem do capital, no entanto, seria um contrassenso reduzir o pensamento de Guerreiro Ramos à ideologia dominante, seja nas concepções norteadoras do governo Juscelino Kubitschek, e, muito menos, como suporte ideológico da autocracia burguesa que se instaurou no Brasil a partir de 1964. Como temos observado ao longo de nossa história, a integração nacional se põe e repõe pela lógica da integração subordinada, o que significa a permanente exclusão de parcelas sociais do universo da produção e da reprodução da vida material.

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____________________    Introdução Crítica… op. Cit p., 1957.

____________________   A redução sociológica, op. cit

___________________    O problema nacional do Brasil, op cit.


 

*Elisabeth Juliska Rago es profesora de la Pontificia Universidad Católica de São Paulo, Departamento de Administración – FEA-PUC-SP. Tiene Maestría en Historia Social y Doctorado en Ciencias Sociales de la PUC-SP. Autora del libro “Outras falas: feminismo e medicina na Bahia: 1836-1931” (São Paulo: Annablume/FAPESP, 2007). Ha publicado varios artículos, entre ellos “Francisca Praguer Fróes: aspirações feministas e os limites da construção da nação”, en “Médicos intérpretes do Brasil” (organización Gilberto Hochman y Nísia Trindade Lima, São Paulo, Hucitec, 2015 – Colección Pensamiento Político-Social). Tiene artículos publicados en el área de relaciones de género y trabajo; Pensamiento social brasileño. Investigadora del CEHAL – Centro de Estudios de Historia Latinoamericana del Posgrado en Historia de la PUC-SP, vinculado al CNPQ.  Miembro afiliado de la Asociación de Historiadores de América Latina y el Caribe – ADHILAC-BRASIL.

NOTA DE LA AUTORA

Este artigo é uma versão adaptada de parte de minha dissertação de mestrado sobre O nacionalismo no pensamento de Guerreiro Ramos. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, 1992.

Ariadna Tucma Revista Latinoamericana. Nº 13/14. Marzo 2019 – Diciembre 2022

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