Literatura e historia em “El Reyno de este mundo” de Alejo Carpentier

Laura Torres de Alencar Neta

Fragmento de mapa en Palacio de Topkapi, Estambuel, firmado por el almirante turco Piri Reis, sobrino de Kemal Reis altirante de la armada otomana 1513 (www.agenciasinc.es)

O presente trabalho tem como objeto de estudo a obra El reino de este mundo produzida pelo escritor cubano Alejo Carpentier y Valmont. Esta obra está assentada nos pilares da história da revolução haitiana,1943 envolvendo diversos personagens históricos que são ficcionalizados, desta forma através da análise da obra El reino de este mundo objetiva-se verificar a relação entre literatura e história.A partir desta análise objetiva-se ainda discutir  de forma breve o Real Mavilhoso, na referida obra. No que diz respeito ao Real maravilhoso e o Boom Latino americano nos baseamos em: Donoso (1971); Rama (195); Carpentier (1987); Chiampi (2015); No debate sobre Real maravilhoso em Chiampi (1994;1980) e o próprio Carpentier(1973) que teorizou sobre Barroco e Real Maravilhoso. Sobre o Romance Histórico e os fatos históricos que permeiam a discussão sobre a Revolução Haitiana nas contribuições dos estudiosos: James CLR (2000) e Seymour Menton (1993) além da contribuição da fortuna crítica existente sobre o autor e a obra. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica de cunho analítico qualitativo. As questões norteadoras que este trabalho respondeu foram as seguintes: O que é real maravilhoso e como este se apresenta em El reino de este mundo? Que fatos existentes na obra El reino de este mundo expressam as formas de defesa dos autóctones diante do colonizador branco?

Desta forma pode-se perceber que o texto literário El Reino de Este Mundo configura-se um romance pertencente ao novo romance histórico da América Latina porque apresenta uma nova forma de historiografia mesclando Real Maravilhoso, Barroco, Historiografia com as formas modernas de desconstrução dos fatos históricos, por exemplo ficcionalizar personagens históricos como forma de mostrar especificidades da América Latina conforme Seymour Menton afirma e esclarece neste estudo.


Palavras Chave: El reino de este Mundo. Real Maravilhoso. Historiografia

Abstract

The present work has as object of study the work El Reino de Este Mundo produced by the Cuban writer Alejo Carpentier y Valmont. This work is based on the pillars of the history of the Haitian revolution, 1943, involving several historical characters that are fictionalized, in this way, through the analysis of the work El Reino de este mundo, the objective is to verify the relationship between literature and history. if we still briefly discuss the Real Mavilhoso in the referred work. With regard to the wonderful Real and the Latin American Boom, we are based on: Donoso (1971); Rama (195); Carpentier (1987); Chiampi (2015); Todorov (2006) Chiampi (1994;1980) and Carpentier himself(1973) who theorized about Real wonderful. About the Historical Romance and the historical facts that permeate the discussion about the Haitian Revolution in the contributions of scholars: James CLR (2000) and Seymour Menton (1993) in addition to the contribution of the existing critical fortune about the author and the work. The methodology used was a qualitative analytical bibliographic research. The guiding questions that this work answered were the following: What is wonderful and how is it presented in El Reino de Este Mundo? What facts in the work El Reino de Este Mundo express the forms of defense of the natives against the white colonizer? In this way, it can be seen that the literary text El Reino de Este Mundo is a novel belonging to the new historical novel of Latin America because it presents a new form of historiography mixing Real Wonderful, Historiography with modern forms of deconstruction of facts historical, for example fictionalize historical characters as a way of showing specificities of Latin America as Seymour Menton affirms and clarifies in this study.

Keywords: El reino de este mundo. Historiography. Wonderful Real.


Alejo Carpentier. Fotografia de Paolo Gasparini. La Habana. 1964

El reino de este mundo é uma narrativa ficcional apoiada em três pilares: O Real Maravilhoso, a História da Revolução Haitiana mesclada com o sincretismo religioso do branco com o vodu -religião praticada pelos escravos haitianos-  e o barroco resultando em um romance histórico característico da América Latina na época no Boom Latino Americano.

A base da história do Haiti, e o neobarroco utilizado como instrumento literário desconstruindo e ressignificando a história factual do Haiti, a Revolução Francesa e os personagens históricos reais que são ficcionalizados causando um estranhamento no leitor que se vê mergulhado em um mundo mítico onde se acredita que o homem pode assumir a forma de animais, insetos comumente conhecido como licantropia no mundo exuberante da natureza caribenha, o mundo dos personagens líderes da Revolução dos haitianos tornam o texto narrativo instigante e motivador para uma leitura que envolve a própria história.

A história começa com uma breve reflexão sobre os colonizadores brancos franceses presentes na ilha do Haiti, que é parte da coroa Francesa e a apresentação do personagem principal ti Noel, um escravo negro que pertence ao fazendeiro Monsieur Lenormand de Mezy. A partir daqui, o narrador em terceira pessoa vai desvendando toda a trama de El reino de este mundo. Carpentier lança mão do barroco e do real maravilhoso para mostrar o choque de culturas e crenças, ora em terceira pessoa ora em primeira pessoa o leitor se depara com um Ti Noel, personagem fictício comparando sua etnia e cultura com a cultura europeia. O colonizador branco é fraco, incompetente débil de caráter e força física além de covarde e medroso. Nesta comparação o leitor é apresentado a um personagem histórico chamado Mackandal, um negro que seria o responsável pela mobilização e doutrinação dos negros sobre a cultura vodu haitiana, este é seguido fielmente por Ti Noel e quando conclama os negros a sublevarem contra os brancos é capturado e morto na fogueira, mas os escravos saem da praça do sacrifício mais confiantes e crentes em Mackandal do que nunca. No meio da cerimonia de castigo de Mackandal, o mandiga estava acorrentado e com muitas cordas depois de ter padecido muitas torturas liberta-se de todas as amarras e voa para o meio da multidão de negros que a partir daí acreditam que ele deixara o corpo material e sua alma ficara no Reino de este mundo transformado em qualquer animal ou inseto.

Alejo Carpentier y Valmont, nasceu no dia 26 de dezembro de 1904 na cidade de La Habana- Cuba, onde viveu até seus 12 anos, como era asmático não podia  desenvolver com os outros garotos determinadas brincadeiras que lhe faziam perder o fôlego, assim ficava em casa lendo e tocando piano, situação que desenvolveu nele uma profunda solidão. Enquanto seu pai viveu em casa Alejo Carpentier conheceu um período de fartura e por um período  foi viver em Paris, iria estudar no Liceu e desenvolvería uma grande vocação para a música.

Algum tempo depois, com a saída de seu paí da família, teve de procurar emprego e foi trabalhar como jornalista. Na apresentação feita ao livro lançado no Brasil Otto Maria Carpeaux explica sobre sua origem: “filho de pai francês e mãe russa e homem de formação europeia, Mas abraçou sua Cuba nativa com todo o amor de filho que volta a casa paterna”. Foi aí que, motivado por seu pai, estudou arquitetura, curso que nunca concluiría e trabalhando como jornalista, começou sua vida política e começou a frequentar grupos esquerdistas, fato que o poria na mira da polícia e de governantes que começaram a vê-lo como uma pessoa subversiva. Devido a estas atitudes políticas, foi preso, e assim que foi posto em liberdade, decidiu exilar-se e voltar a sua terra natal no ano de 1939.

É ainda Otto Maria Carpeaux quem nos dá maiores informações sobre Carpentier em sua apresentação ao livro El reino de este mundo, uma vez que foi um dos seus primeiros biógrafos: “Começou a escrever poesia negra, à maneira de Nicolás Guillén e Ramón Guirao. Participou de conspirações contra a ditadura. Foi preso. Na prisão começou a escrever o romance social Ecue- Yamba-O.”

Écue-Yamba-Ó é um romance escrito, neste período em que esteve encarcerado e trata da terceira década do século XX em Cuba. Obra fundamental para se entender a realidade cubana deste período e fatos da vida do próprio Alejo Carpentier. Narra a vida do negro cubano Menegildo Cue um herói que busca dentro de si mesmo a força e o querer para realizar suas metas, seguir a vida e obter o amor de Longina. A intenção do narrador onisciente é claramente política. Ao lado desta história se desenrola as eleições políticas de Cuba em 1920, e a descrição dos candidatos a Presidente da República. Nesse contexto as tentativas de corrupção da população negra que vai mudando de opinião sobre a situação sócio política do país sem perceber as armadilhas nas quais estão mergulhando, vão se desenrolando, somente Menegildo, Longina, Salomé e seus filhos conservavam um caráter e uma tradição antilhana.

Los pasos perdidos (1953), é o diário fictício de um músico cubano no Amazonas, que tenta definir a relação real entre Espanha e América, seguindo a conquista espanhola. Esta foi qualificada como sua obra mestra, narra a história de “uma expedição musicológica que, a serviço de um museu nos Estados unidos, procura colecionar instrumentos musicais folclóricos na região das fontes do Orinoco e descobre lá, uma civilização arcaica, bárbara e laica”. ( CARPEAUX, in El reino de este Mundo).

 La guerra del Tiempo ( 1958) trata da violência e da natureza repressiva do governo cubano durante a década de 1950. Em 1962 foi publicada El siglo de las luces, na qual narra a vida de três personagens levados pelo vendaval da Revolução Francesa. Concierto Barroco (1974) é um romance que mostra suas visões sobre a mescla de culturas na América Hispânica. El recurso del método (1974) e La consagración de la primavera (1978), Dentre as obras que viria a escrever e publicar encontra-se El Acoso, narra o episódio com características auto ficcionais, da história contra a ditadura de Gerardo Machado, na qual o autor, procurado pela polícia, em meio a uma situação revolucionária em Cuba, se esconde numa sala de concertos, durante uma execução da sinfonia Heroica de Beethoven.

Gerardo Machado

Já em Cuba, Alejo Carpentier, realizou várias viagens e em uma de suas visitas ao Haití, teve a oportunidade de observar o sincretismo cultural religioso criado pelos negros africanos, que haviam sido trazidos para a colônia como mão de obra para as plantações, além da cultura europeia dos franceses, com seus títulos de nobreza e a religião católica.

Com relação aos autores pertencentes ao Real Maravilhoso percebemos que este processo se deu através de dois planos complementares: no plano social, a auto afirmação do escritor como figura independente, junto ao reconhecimento da singularidade de seu fazer profissional que supôs dar os primeiros passos firmes no caminho da profissionalização do escritor. Com respeito aos leitores percebeu-se uma nova corrida aos livros produzidos pelos escritores do Boom na América Latina e na Europa, coisa até então impensada. No plano estrito de seu trabalho, os modernistas vão reconhecer a linguagem como instrumento originário e chave de toda produção literária ilustrada do mundo hispano-americano conforme exalta Jimenez (1998):

O período compreendido entre 1875 e os anos da primeira guerra mundial (1914-1918) delimita, aproximadamente, uma das épocas mais agudamente conflitiva na história da sensibilidade e da cultura de todo o ocidente. A esse período, que acolhemos sob a etiqueta universal de fim-de – século, corresponde, nas letras hispânicas, nosso modernismo: foi este um movimento iniciado na América de língua espanhola e que muito rápido se estendeu também à Península. (JIMENEZ, 1998, p. 7)

            A realidade da leitura e da escrita nessa época é visível, como a leitura atenta do fragmento acima demonstra. Mas o estágio a que chegamos é resultado da luta de alguns escritores que desempenharam um importante papel para uma conscientização da importância do tema nas obras literárias através dos tempos, e depois que algumas obras foram levadas a tela do cinema mostrando aos olhos dos espectadores aspectos sociais, econômicos e políticos que muitas vezes a leitura rápida de um texto não deixa à mostra a primeira olhada. Por isso, a questão começou a impor-se dado o interesse e a necessidade de pesquisas e estudos sobre a História e o sobrenatural presente nas obras de ficção, no caso deste estudo de mestrado: El reino de este mundo da autoria de Alejo Carpentier.

Em 1949, Carpentier escreve um de seus romances mais importantes: El reino de este mundo e a partir do lançamento desta obra, o autor é elevado a um patamar de grande literato mundial, pois foi um dos poucos escritos historiográficos que comenta e exemplifica o processo de independência do Haiti. Além disso, Alejo Carpentier, ficou conhecido como um dos fundadores do real maravilhoso, tipo de gênero literário onde a literatura joga e se entrelaça com a realidade e os sonhos, a imaginação e o raciocínio, a vida e a morte, que ao lado do barroco cria um tapete suntuoso e alegórico do Haiti a princípio do século XIX. Assim, Alejo Carpentier, unifica-se a um movimento em busca de tradições e origens da historia haitiana, uma busca de consciência americana própria, autônoma e independente de um Novo Mundo.

Em El reino de este mundo, Alejo Carpentier, relata a história haitiana e trata de alicerçá-la em torno de datas e eventos históricos ocorridos no ano de 1943, ao período em que ocorreu o reinado de Henri Christophe. Desta forma, menciona o envenenamento das águas realizado por Mackandal em 1757 e sua execução em 1758, o levante de Bouckman em 1791, a fuga dos plantadores franceses para a cidade de Santiago de Cuba, entre os quais se encontrava Lenormand De Mezy, a tentativa de Napoleão Bonaparte para recuperar o controle da colônia haitiana entre 1801-04, o envio de Paulina Bonaparte como representante real em 1801-02, o reinado de Henri Christophe entre 1807-18820, e finalmente a chegada dos agrimensores que executaram um Código rural enviados por Jean-Pierre Boyer em 1826.Além disso aproxima e identifica personagens da história haitiana como o latifundista da região Limbé ao norte do Haiti, Lenormand de Mezy. “ É preciso estudar o impacto da Revolução Francesa sobre as populações escravizadas do Caribe.[…] El Reino de este mundo é a História de uma ditadura libertadora dos pretos do Haiti e de um ditador-libertador como Toussaint l’Ouverture”( Otto  Maria Carpeaux- Apresentação da obra)

Em El reino de este mundo, é possível verificar a presença do realismo mágico e maravilhoso, uma mistura de história independentista e revolucionaria haitiana, junto ao sincretismo religioso, o voduismo, os sacrifícios de animais, do calor e suor dos escravos negros das plantações em uma trama na qual a ironia do poder repete um círculo vicioso no qual todo final é uma origem e relação entre quem está no poder e quem são subjugados. Mas como explica o próprio Carpentier no Prefácio do seu livro: “A cada passo encontrava a Realidade Maravilhosa. Pensava também que essa presença e vigência da Realidade Maravilhosa não era privilégio único do Haiti, senão um patrimônio de toda a América, onde  ainda não se concluiu, por exemplo, um inventário de cosmogonias” ( CARPENTIER, 1985)

A referência documentada sobre a história do Haiti fortalece sua credibilidade, no entanto, a inclusão do barroco na sua literatura e seu entorno provem de um ambiente místico que transporta o leitor a um ambiente totalmente caribenho o que faz que o leitor se sinta transportado a um ambiente místico que o leva até o palácio de Henri Christophe, deixou seu corpo nos muros, como uma perpetuação do primeiro rei negro do Novo Mundo.

Embora as relações entre realidade histórica e literatura, bem como, as vivências dos autores que são expressas em suas obras sejam um campo especulativo e que constituem uma fonte de pesquisa para os estudos literários, os leitores, devemos ter uma gama de conhecimentos de áreas afins para  compreender-se melhor o texto literário e poder assim construir um pensamento crítico sobre as obras de arte literárias produzidas pelos escritores pertencentes ao Realismo Mágico e Maravilhoso.

O Boom Latino-americano ou (Nova Novela), surgiu entre 1960 e 1970, e fez com que a literatura latino-americana experimentasse um período de ampla produção e chegasse ao ápice de sua difusão. Esta etapa da história literária, ficou conhecida mundialmente como “Boom”, porque concentrava obras de um grupo de romancistas latino-americanos relativamente jovens, e pelo fato de antes deles a literatura produzida na América Latina não ser muito atualizada e reconhecida na Europa. Assim, o “Boom Latino Americano foi um movimento revolucionário”. Os romances deste período se distinguem por uma série de inovações técnicas na narrativa que ficou conhecida como realismo mágico, fantástico e maravilhoso.

De acordo com Donoso (1987), o período de ouro da narrativa latino-americana, época em que se percebe um interesse inesperado por estes romances porque abordavam temáticas inusitadas e uma renovação na forma de conceber e fazer literatura, era quase que urgente criar uma literatura diferente, ajustada ao avanço das comunicações e na tentativa de solucionar problemas morais, psicológicos e sociais.

José Donoso. 1981.

O Boom destacou um grupo de escritores; na Colômbia, Gabriel Garcia Márquez que é considerado um dos autores mais significativos do século XX. Obteve o Prêmio Nobel da Literatura em 1982. A obra de Garcia Márquez caracteriza-se pela presença do realismo mágico, onde se misturam elementos maravilhosos com a narrativa realista, fazendo que o leitor se depare com fatos absurdos e tratados de forma tão natural, como se nada daquilo fosse assombroso, como ilustra o trecho abaixo que descreve a forma como Remédios La Bella ascende aos céus da mesma forma como Nossa Senhora:

 […]Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irreparável, e deixou os lençóis à mercê da luz, vendo Remédios, a Bela, que dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos besouros e das dálias, e passavam com ela através onde as quatro da tarde terminavam, e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde não podiam alcançá-la nem os mais altos pássaros da memória (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 274).

Como é possível constatar com a leitura do fragmento da obra de Garcia Márquez, a leitura causa um estranhamento e o leitor se vê às voltas com um mundo mágico onde tudo é possível até mesmo um ser humano subir aos céus como se fosse uma santa e nada nem ninguém estranha e o medo não é pela moça que sobe e sim pela perda dos lençóis. Essa nova maneira de narrar causou um alvoroço nos leitores de todo o mundo porque os leitores do final do século XIX já estavam cansados da leitura dos romances da forma tradicional. Benjamin explicita que as experiências vivenciadas na figura do narrador estavam em baixa, pois “ a arte de narrar está em vias de extinção”. ( BENJAMIN,1987 p.197)

          No que diz respeito a obra escrita por Carpentier o realismo maravilhoso é percebido de forma bem diferente. O personagem principal Ti Noel demonstra a forma como a fé e crença dos negros residem em outros fatos, concretos e mais palpáveis. A obra tem início com uma breve historiografia sobre a burocracia francesa presente na ilha do Haiti, que faz parte da coroa da França e é quando pela primeira vez, Ti Noel, um escravo negro, pertencente ao latifundiário Lenormand de Mezy começa a observar o meio ambiente e despertar sua curiosidade sobre o mundo que o circunda. Neste ponto, Carpentier fixa a presença do personagem que manterá em toda a narrativa, a imagem que ilustrará todos os povos africanos será o personagem, Ti Noel, que simbolicamente representará o negro e a cultura dos mesmos no Haiti como por exemplo o conhecimento do escravo sobre cavalos, uma vez que sua tribo eram guerreiros que montavam a cavalo:

Entre os vinte garanhões transportados para o Cabo Francês pelo capitão do barco, que era intermediário de um criador normando, Ti Noel escolhera sem vacilação aquele reprodutor grandalhão, de garupa redonda, bom para a remonta das éguas que estavam parindo potros cada vez menores. Conhecedor da perícia do escravo em matéria de cavalos, Monsieur Lenormand de Mezy, sem reconsiderar a escolha , pagara em sonantes luíses. ( CARPENTIER, 1985,p.1)

          Já nesse trecho o leitor pode verificar a comparação das duas raças a partir da escolha de Ti Noel, o branco metaforicamente representa o reprodutor fraco de descendentes medrosos, frágeis e sem expressividade. Nesta mesma linha de pensamento aparece Ti Noel, observando nos quadros a figura do rei europeu como uma imagem da incompetência, submisso e fraco de caráter, minimizado ao lado da figura de um rei negro, valente, guerreiro, destemido. “ao lado do açougue, o livreiro tinha pendurado num arame, com prendedores de roupas, as últimas estampas recebidas de Paris. Em quatro delas, pelo menos, ostentava-se o rosto do rei da França, moldurado de sóis, espadas e lauréis” (Carpentier, 1985, p.2). Embora não tivesse cultura, Ti Noel tinha sido instruído nessas verdades pelo profundo saber de Mackandal. Na África, o rei era guerreiro, caçador, juiz, sacerdote e seu sêmen precioso engrossava em centenas de ventres uma vigorosa estirpe de heróis. Em seguida o leitor é surpreendido pelo narrador quando Ti Noel é atraído por uma gravura diferente, vibrante que a seus olhos cansados de verificar o povo branco dominando e submetendo os negros era mesmo inacreditável:

 […] representava ela uma espécie de embaixador ou almirante francês sendo recebido por um negro rodeado de leques de plumas e sentado sobre um trono adornado de figuras de macacos e lagartos.__ Que gente é essa? Perguntou atrevidamente ao livreiro, que acendia um cachimbo comprido de barro na soleira de sua loja. __ “É um rei do teu país”; (CARPENTIER, 1985,p.3) 

          Desta forma o narrador onisciente vai desenvolvendo a história ao modo de narrar do qual explicita muito bem Walter Benjamin (1987. p. 198) “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”.

Os escritores do Boom latino americano começaram a publicar e de toda América Latina saíram representantes: do Perú Jorge Mario Pedro Vargas Llosa, peruano de Arequipa e um dos mais importantes romancista e ensaísta da América Latina, assim como um dos principais autores de sua geração. Vargas Llosa alcançou a fama na década de 1960 com seus romances: La ciudad y los perros(1963), La Casa Verde (1965) e Conversación en la Catedral (1969), é  um clássico vivo e segue escrevendo crítica literária e jornalismo até nossos dias.

            Na Argentina, Júlio Cortázar, Ernesto Sábato e Jorge Luis Borges; No Panamá Carlos Fuentes, que alcançou grande repercussão com duas obras suas: La región más transparente(1959) e La muerte de Artemio Cruz (1962) que o projetarão como uma das figuras centrais do boom do romance latino americano. Em Cuba Alejo Carpentier.O compromisso com a revolução cubana foi uma característica fundamental em sua obra que se caracterizou pela incorporação de procedimentos narrativos típicos da literatura inglesa e norte americana, como:a fragmentação do cenário, o monólogo interior, o olhar retrospectivo, um lirismo cheio de vigor e uma preocupação e crítica social que deixa atrás o tipo de regionalismo utilizado pelos escritores da época da revolução.

O sucesso de público e interesse pela obra de Carpentier, segundo Júlio Cortázar em uma das muitas entrevistas dadas sobre o novo romance latino american, deve-se ao fato de os escritores deste continente, esquecerem os modelos estrangeiros, especificamente do continente europeu e começarem a olhar ao redor, a riqueza que havia em seu próprio continente. O mundo maravilhoso, fantástico e mágico que existia naquela terra, uma riqueza de detalhes típicos da América latina que havia sido descrita já na carta do Descobrimento da América pelo colonizador Cristovão Colombo e mesmo pelo conquistador espanhol Hernán Cortez.

Fragmento de mapa en Palacio de Topkapi, Estambuel, firmado por el almirante turco Piri Reis, sobrino de Kemal Reis altirante de la armada otomana 1513 (www.agenciasinc.es)

 Marcado pelo contexto histórico e político-social na década de 1960, o movimento surgiu em uma época de grande turbulência nos países latino-americanos. Mais que um movimento literário, devemos considerá-lo como o ingresso definitivo desta literatura a sua etapa contemporânea, pelo seu conjunto de afinidades, diversidades e divergências.

O Boom, segundo Donoso (1987), foi uma etapa despojada de tradições técnicas e temáticas, mais livre e simples nos temas e tratamentos da linguagem. Sem modelos pré estabelecidos, defendia a liberdade, a individualidade, a autenticidade dos seus autores e obras. Um ponto de convergência entre os escritores do Boom Latino Americano, foi a Revolução cubana que foi o primeiro ponto de encontro para quase todos os escritores deste período, uma vez que se tratava da primeira revolução socialista latino-americana, no entanto, com o passar do tempo, transformou-se em um ponto de desencontro para os escritores, pois a ideia de democracia a qual haviam aderido não chegou a ocorrer.

Carpeux no prólogo de El reino de este mundo esclarece que todo o continente latino americano passava por essa década de várias situações que viabilizaram um olhar mais atento dos escritores para seu entorno, como o golpe de Estado na Guatemala, a Revolução Cubana, a ditadura implantada na República Dominicana, uma nova forma de olhar a situação sócio política que estava se implantando no continente como o Neo colonialismo ( ou seja, uma nova forma de imposição da colonização da América), várias ditaduras sendo implantadas nos países latino americanos e o caos político no Perú, foram um ambiente propício para este movimento.

Ao pesquisar o fictício( palavra imaginativa transmitida pela literatura através da palavra escrita) e o imaginário ( quando há uma mescla de realidade com fantasia ressignificada através da literatura)e a forma como estes textos voltados a literatura da violência escrita pelos escritores do Boom Latino-Americano, como por exemplo, Alejo Carpentier, percebe-se a forma como mostraram a realidade vivida pela América Latina no que diz respeito ao regime de violência, ditadura militar ou às diversas formas de violência vividas no período colonial sob a perspectiva do real maravilhoso ou mesmo do realismo mágico. Segundo Donoso (1987), até a década de 1960 os escritores hispanos americanos não eram lidos na Europa e nos Estados Unidos, no entanto entre 1960 e 1970, observou-se uma nova escrita na produção ficcional latino-americano que ficou conhecido como Boom novelístico Latino Americano.

Para o escritor e crítico uruguaio Angel Rama (2005) o Boom foi um movimento elitista, dominado por homens, onde estes eram figuras que concentravam o foco, sendo os demais condenados a segunda fila, ou seja, os escritores best-sellers. Rama os ataca muito rispidamente, pois o da primeira fila menos preza. Afirma que: “[…]les niegan  virtualidad  artística y social, aduciendo que sus obras son meras transcripciones de las novelas vanguardistas europeas o falsos productos  de los mas media o imágenes enajenadas de la realidad urgida del continente, etc.,etc.” (RAMA, 2005,p.163).  

Desta forma verifica-se que todos os autores que se incluem no período conhecido como Boom Latino americano, que caracterizou-se por incorporar obras e autores que souberam recriar de forma incomparável o continente americano em um estilo que foi característico a ponto de receber da crítica literária essa denominação particular para eles. Nestas obras é possível enxergar todos os países que compõe a América Latina, com sua cultura mestiça, seu encontro de culturas, o sincretismo religioso, o colorido e a ingenuidade carregada de um modo de ser que diferencia o novo do velho mundo, fator que sempre atraiu para este continente os olhares do europeu e mesmo dos asiáticos porque ainda representam o inexplorado e este fator foi e ainda é interessante aos olhos do europeu.

O realismo mágico, fantástico e maravilhoso foi uma escola literária que veio revolucionar a sociedade da época, ou seja, mostrar seu valor social, político e econômico. Algumas obras desse movimento foram tão significativas que chegaram às telas dos cinemas mostrando aos olhos dos espectadores aspectos importantes que muitas vezes a leitura rápida de um texto não deixa a mostra. Além disso, é no Realismo mágico e maravilhoso que encontramos tanto narrações cotidianas e comuns como fantásticas, tornando-se um gênero literário de ficção. 

Chiampi (2015, p.167) explica: “Para muitos autores, o sobrenatural não era senão um pretexto para descrever coisas que não teriam nunca ousado mencionar em termos realistas”. E mais adiante ela agrega que “O fantástico combate à censura, ele expõe tudo de uma forma aberta, deixando disponível para quem quer ler. ” Já o realismo maravilhoso mostra uma marca da identidade compartilhada por determinadas comunidades, como por exemplo a comunidade afro existente na obra escrita por Alejo Carpentier que acredita nas ações e crenças propostas pelos personagens principais da obra El Reino de Este Mundo. A teórica nos esclarece que:

se quiser indicar um termo onipresente e de uso indiscriminado na crítica hispano-americana, este termo é, certamente, realismo mágico. A constatação de um vigoroso e complexo fenômeno de renovação ficcional, brotado, entre os anos de 1940 e 1955, gerou o afã de catalogar suas tendências e encaixá-las sob uma denominação que significasse a crise do realismo que a nova orientação narrativa patenteava. Assim, o realismo mágico veio a ser um achado crítico-interpretativo, que cobria, de um golpe, a complexidade temática (que era realista de outro modo) do novo romance e a necessidade de explicar a passagem da estética realista-naturalista para nova visão (mágica) da realidade. (CHIAMPI, 2015, p.19)

A leitura crítica deste fragmento nos permite visualizar que Chiampi (2015) explica quando surgiu o termo maravilhoso, já demonstrando que o mesmo foi uma forma competente de entendimento da passagem estética do realismo/naturalismo para uma nova visão da realidade ficcional onde imperava pela primeira vez a forma mágica, fantástica e maravilhosa de falar e escrever textos literários por esta nova forma de conceber o mundo ficcional.

Seja individualmente, seja coletivamente, o leitor é a instância responsável por atribuir sentido àquilo que lê. Zappone (2005, p.154) explica que, “a materialidade do texto, os pretos no branco do papel só se transformam em sentido quando alguém resolve ler”. E, assim, os textos são lidos sempre de acordo com uma dada experiência de vida, de leituras anteriores e num certo momento histórico, transformando o leitor em instância fundamental na construção do processo de significação desencadeado pela leitura de textos (sejam eles literários ou não) .E é esse leitor, com novo status, o principal elemento da Estética da Recepção, dinâmica da relação da obra e a projeção da mesma pelo leitor em determinada sociedade. El Reino de Este Mundo é uma leitura envolvente e envolve o leitor do início ao fim porque mostra o real maravilhoso em sua forma barroca, grotesca, natural e impactante:

Enquanto o amo fazia a barba Ti Noel pode comtemplar a seu gosto as quatro cabeças de cera que adornavam a estante da entrada. O ondulado das perucas enquadrava os semblantes imóveis, antes de se espalhar, num remanso de crespos cachos, sobre um tapete encarnado. […] Por graciosa casualidade, o açougue ao lado exibia cabeças de terneiro, esfoladas, com um caminho de salsa sobre a língua, que também tinha o mesmo tom de cera, e estavam como que adormecidas entre rabos escarlates, patas em gelatina e panelas de tripas á moda de Caen.” ( CARPENTIER, 1985,p,2)

Em 1949, com a publicação de El reino de este mundo , de Alejo Carpentier , encontrou-se uma nova significação para o maravilhoso na literatura, o maravilhoso americano. No prólogo deste livro, Carpentier critica o maravilhoso dos surrealistas, vendo-o como algo falso. Por meio desta obra, o escritor cubano mostra o verdadeiro maravilhoso e sua íntima relação com a América Latina, sendo patrimônio dessa região. Lendo a citação abaixo é possível visualizar o que de fato significa o real maravilhoso para este autor.

O realismo maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação não habitual ou particularmente favorecedora das desconhecidas riquezas da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com especial intensidade em virtude de uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de “estado limite”. ( CARPENTIER,1985)

Através das palavras de Carpentier, já é possível verificar que o real maravilhoso não tem o mesmo formato utilizado por Garcia Márquez ou pelo estilo do fantástico utilizado pelo contista Júlio Cortázar. Enquanto este mescla a realidade e irreal de tal forma que fica difícil o leitor perceber onde termina a realidade e onde começa o sonho, por exemplo, a narrativa de Carpentier é diferente e mostra-se impactante pela forma como o narrador de El reino de este mundo vai descrevendo as ações de Ti Noel quando este observava Mackandal o seguia e ia fazendo desta descoberta um motivo para viver como cativo. “Com os olhos sempre injetados, o tronco possante, a delgadíssima cintura, o mandinga exercia estranha fascinação sobre Ti Noel.” E mais adiante nos deparamos com o que Walter Benjamin chama de fascinação e capacidade de o narrador ter de prender a atenção de seus ouvintes porque segundo Benjamin ( 1987,p.206): “A morte é sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade.”

Benjamim afirma que a narrativa tem seu valor dentro da ideia da morte, contando suas experiências no mundo em que essa ideia de finitude perde valor, o narrador, que antes narrava suas experiências no leito de morte, não tem mais tanta importância dentro dos lares e, consequentemente, a narrativa também não.  É da morte que o narrador retira sua autoridade. Dessa forma interfere na extinção da narrativa, uma vez que a autoridade daquele que vai morrer e se recorda da vida, está na origem da narrativa conforme nos esclarece Carpentier:

Desta forma corria fama que sua voz grave e surda tudo conseguia das negras. E que suas manhas de narrador, caracterizando seus personagens com caretas horríveis, impunham silêncio aos homens, sobretudo quando recordava uma viagem que fizera, anos atrás, como cativo, antes de ter sido vendido aos negreiros de Serra Leoa. ( CARPENTIER, 1985,p.7)

Alejo Carpentier parte de uma alteração do real e mostra que o real maravilhoso origina-se de um sentimento de fé pelo receptor, para que possa percebê-lo, como ele mesmo afirma em seu prefácio: “Pisava eu numa terra onde milhares de homens ansiosos pela liberdade acreditavam nos poderes licantropicos de Mackandal, a tal ponto, que a fé produziu um milagre no dia da sua execução.”( Carpentier, 1985). Seguindo ainda as premissas de Carpentier, são considerados como elementos que compõe a categoria do maravilhoso, entre outros, algumas das historias protagonizadas por personagens interespaciais e a figura do demônio como ele mesmo ilustra na visita que Mackandal e Ti Noel fazem a Mamãe Loi perante os olhos assombrados de Ti Noel.

Certa vez, Mamãe Loi emudeceu de maneira estranha justo quando ia chegando á melhor parte de um relato. E obedecendo a uma ordem misteriosa, correu à cozinha, mergulhando os braços dentro de uma panela cheia de azeite fervendo. […] seus braços, quando ela os retirou do azeite, não apresentavam nem bolhas nem sinais de queimadura, apesar do pavoroso chiado de fritura que se ouvira pouco antes. ( CARPENTIER, 1985,p.10)

No trecho acima o leitor se depara com a cultura do negro haitiano, a fé no desconhecido, tudo era possível neste mundo, e esta cultura era compartilhada por todos como sendo verdadeira. Carpentier demonstra que o verdadeiro maravilhoso pertence à América, e já no prólogo de seu romance, relata o que encontra durante sua viagem ao Haiti às propostas literárias europeias:

[…] Depois de sentir o tão bem propalado sortilégio das terras do Haiti, de ter encontrado as advertências mágicas pelas estradas de terra vermelha da Meseta Central, de ter ouvido os tambores de Petro de Rada, fui tentado a aproximar aquela maravilhosa realidade recém-vivida à exaustiva pretensão de suscitar o maravilhoso que caracterizou certa literatura europeia nestes últimos trinta anos.[…] (CARPENTIER, 1985, p. 13)

Na citação acima Carpentier deixa transparecer que havia despertado nele um estranhamento que seria o grão de gozo que faz que a imaginação nasça e com ela nasce o livro e a teoria sobre o Real maravilhoso que o autor utiliza em El reino de este mundo e já anuncia que é o significado de maravilhoso que daria conta de explicar um mundo que estava bem longe da realidade europeia.

O maravilhoso distingue-se do mágico e do fantástico porque nestes outros dois, o leitor não pressente a fé, é uma história aparentemente real ao passo que em  determinado momento aparece um acontecimento surpreendente e inexplicável, ou seja, há um evento sobrenatural que causa ruptura na realidade. Nesse sentido Todorov (2006, p. 31) afirma que: “O Fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural.”Se o fantástico é uma mescla da realidade e do sonho, o Realismo maravilhoso difere do mesmo porque caracteriza-se pela intercomunicação entre a realidade e as crenças compartilhadas por determinadas comunidades até os nossos dias. O real maravilhoso está vinculado à crença de sua existência real, por nascer da cultura pré-estabelecida e compartilhada por muitos membros da comunidade e aceito como verdadeiro pelos mesmos.

Dessa forma, Chiampi (2015, p.167) explica: “Para muitos autores, o sobrenatural não era senão um pretexto para descrever coisas que não teriam nunca ousado mencionar em termos realistas”. E mais adiante ela agrega que “O fantástico combate a censura, ele expõe tudo de uma forma aberta, deixando disponível para quem quer ler.”Já o realismo maravilhoso mostra uma marca da identidade compartilhada por determinadas comunidades, como por exemplo a comunidade afro existente na obra escrita por Alejo Carpentier que acredita nas ações e crenças propostas pelos personagens principais da obra El Reino de Este Mundo.

 […] antes de tudo, para sentir o maravilhoso e necessário ter fé.[…] Na América, porém onde nunca se escreveu nada semelhante, existiu um Mackandal, dotado desses mesmos poderes pela fé de seus contemporâneos, que deu alento, com este mesmo  sortilégio a uma das sublevações mais estranhas e dramáticas da História. ( CARPENTIER, 1985)

A leitura crítica deste fragmento nos permite visualizar que Carpentier(1985), explica o significado do termo maravilhoso, já expondo que o mesmo foi uma forma competente de mostrar a passagem estética do realismo para uma nova visão da realidade ficcional onde imperava pela primeira vez a forma do real maravilhoso e do que este movimento foi capaz de fazer com o povo da América, neste caso específico dos então povos escravizados do Haiti. É Carpentier em seu prefácio e teorizando sobre o real maravilhoso nos adverte sobre as páginas de seu livro:

nele se narra uma sucessão de fatos extraordinários, ocorridos na ilha de São Domingos, numa época determinada, que não alcança o período de uma vida humana, deixando que o maravilhoso emane livremente de uma realidade estritamente seguida em todos seus detalhes.( CARPENTIER, 1985-prefácio ).

Constata-se que o universo diegético do maravilhoso é extremamente distinto do habitual, ou melhor, do mundo racionalizado. O mundo dele é o da irracionalidade, no sentido de que as leis que o regem contrariam a razão. E é com base nesta concepção do mundo maravilhoso que Aristóteles, na Poética (1987), aponta a epopeia como uma forma literária mais propícia de manifestar o Maravilhoso do que a tragédia, uma vez que nesse tipo de texto literário o natural, racional, e o sobrenatural coabitam o mesmo plano narrativo com total harmonia. Ou seja, na epopeia o sobrenatural é aceito de imediato.

O mundo do maravilhoso é completamente arbitrário, insano, fora da realidade que nos circunda, ou seja, “é instituído desde o início um mundo inteiramente arbitrário e impossível” e nele “não se verifica sequer a tentativa de fazer passar por reais [no sentido racional] os acontecimentos insólitos e o mundo mais ou menos alucinado em que eles têm lugar”. (FURTADO, 1980, p. 34-35). Nesta vertente da literatura, há total ausência da hesitação quanto à realidade dos acontecimentos extraordinários, pois o mundo no qual estão inseridos lhes atribuem uma natureza inquestionável, ou por que não dizer maravilhosa, como toda a carga semântica que a palavra sugere. Carpentier nos esclarece o momento do nascimento do maravilhoso:

O Maravilhoso começa a sê-lo, de maneira inequívoca, quando surge de uma alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, iluminação inabitual ou especialmente favorecedora das inadvertidas riquezas, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebida com particular intensidade em virtude de uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de ‘estado limite. (CARPENTIER, 1985, p. 9).

Portanto, o mundo onde o Maravilhoso se realiza é uma realidade diferenciada da que nos rodeia. É uma alteração, ou ainda uma forma privilegiada dela. Ou seja, é uma realidade ampliada, pois lida com o natural e o sobrenatural, visto que criaturas sobrenaturais podem existir, e existem, são capazes de estabelecer diálogo com o mundo humano, e estabelecem. Logo, adentrar no universo do Maravilhoso possibilita conhecer essa nova realidade, ou melhor, a realidade que é encoberta pelo mundo dito natural.

A título de conclusão deste sub tópico agrega-se que o realismo maravilhoso ou real maravilhoso americano, foi um termo criado por Alejo Carpentier, em 1949, no prólogo do seu livro El Reino de Este Mundo para designar, não as fantasias ou invenções do narrador, mas o conjunto de objetos e eventos reais que singularizam a América no contexto ocidental. Sendo uma expressão amiúde associada pela crítica hispano-americana ao realismo mágico, já que para os ocidentais a fantasia, ficção dos descendentes dos autóctones, os hispanos americanos, a realidade é explicável pelas crenças que fazem parte de sua cultura. No entanto, em sua teoria, Carpentier, estabelecia uma verdadeira profissão de fé como escritor e exortava os narradores latino-americanos a se voltarem para o mundo americano, cujo potencial de prodígios, garantia o autor, sobrepujava em muito a fantasia e a imaginação europeia.

As características do real maravilhoso, assim com as correntes vizinhas o realismo mágico e o realismo fantástico, tais como a problematização da racionalidade, crítica à leitura romanesca tradicional, o jogo verbal para obter a credibilidade do leitor, além da representação de mitos e crenças que compartilha com o mágico. Podemos ademais citar os motivos que são servidos pela tradição narrativa e cultural: as aparições de demônios, as metamorfoses, os transtornos da causalidade, de tempo e espaço. No próximo tópico será possível verificar como estas características se apresentam.

El Reino de Este mundo: um pouco de historiografia

El reino de este mundo, recebeu muitas críticas na época de seu lançamento e muito tempo depois também. Algumas destas críticas positivas e outras nem tanto, estão diluídas neste estudo, como por exemplo, o que afirma sobre ela o crítico Jorge Majfud quando este afirma em sua página sobre o Centro de Estudos sobre Capitalismo: “Carpentier logra iniciar y sintetizar un nuevo constructo imaginario que –real o virtual, nunca lo sabremos- se llamará “literatura latinoamericana”, “real-maravilloso”, o como se prefiera.” Outra crítica sobre El Reino de Este Mundo foi a do próprio Carpentier, em uma entrevista dada ao jornal Combate em Paris, nos dá algumas informações sobre sua obra .

«A mi regreso de Europa, ya en La Habana comencé a trabajar en El reino de este mundo. Un esbozo de su primer capítulo salió en La Gaceta de Cuba que publicaba Nicolás Guillén en 1943. La obra la terminé en Venezuela. (…)

»En algunos de mis libros, más particularmente en El reino de este mundo, he sufrido la influencia del surrealismo en mi visión del mundo poético y onírico de Haití. Sin embargo, siempre he tenido una conciencia muy clara de que tenía una obra por realizar en función de la América Latina, ese continente que me interesa y me concierne al máximo». Disponivel em<Combat, París, 6 de octubre de 1967>

  Lendo as duas citações de uma entrevista concedida por Alejo Carpentier ao Jornal Combate, o leitor pode constatar  como foi o nascimento da obra El reino de este mundo e a  consciência do autor, Carpentier, que iria necessitar de um estilo de época específico para retratar a realidade da América Latina e este estilo seria o Barroco.

Miguel Ángel Fornerín, em um  ensaio escrito para a Revista eletrônica  Nueva Sociedad, afirma que:«La poética de Carpentier es una teoría del compromiso del escritor con la sociedad y los cambios políticos; nunca pierde esta teorización el papel del sujeto como artífice de la historia…»

A narrativa é dividida em quatro partes: na primeira temos a apresentação dos personagens principais, que são TI Noel e a figura mítica de Mackandal que segue viva por toda a obra e os personagens secundários que mesclam personagens históricos com personagens fictícios.

O texto narra a saga de Ti Noel, escravo negro do monsieur Lenormand de Mezy, que fazia parte da elite francesa branca que dominava o Haiti antes de sua independência. O protagonista traça o panorama da vida na região e seus trabalhos em meados do Século XVIII. Na primeira parte, enquanto Ti Noel sob o jugo dos franceses, na figura de Lenormand de Mezy, lembra com saudades da África, quando Mackandal tem seu braço engolido pelas moendas do engenho. Surge, então, a figura histórica – e real – do escravo Mackandal, que se torna especialista em ervas, cogumelos e outros itens naturais após perder um braço em uma máquina de cortar cana. “Agarrada pelos cilindros que, de repente, giraram com inesperada rapidez, a mão esquerda de Mackandal tinha ido junto com as canas, arrastando o braço até o ombro.”( CARPENTIER, 1985,p.8)

Depois de surpreender a todos e sumir sem deixar vestígios, o foragido entra em contato com Ti Noel para envenenar alguns animais de seu amo. “Um dia, quando as águas dos rios baixaram, ti Noel encontrou a velha da montanha nas imediações das cavalariças. Ela lhe trazia um recado de Mackandal”. Carpentier(1985,p.14) A partir daí, inicia-se uma onda de envenenamentos e mortes inexplicáveis, causando furor nos comandantes. “ o veneno se espalhou pela Planicie do Norte, invadindo os potreiros e os estábulos.[…] Logo se soube com espanto que o veneno entrara nas casas.” Carpentier (idem.p.18).

O maneta Mackandal, ogã do ritual Radá, investido de poderes extraordinários, porque vários deuses maiores tinham baixado nele, era o Senhor do Veneno. Dotado de suprema autoridade pelos Mandatários da Outra Costa, tinha proclamado a cruzada de extermínio, eleito como ele havia sido para acabar com os brancos e criar um grande império de negros livres em São Domingos.( CARPENTIER, 1985,p.19)

Como escravo desvalorizado, afrouxa-se a vigilância e ele consegue fugir para as montanhas. Nas montanhas, incorpora os poderes sobrenaturais das divindades africanas e, primeiramente, morrem os animais dos colonizadores e depois os próprios. Como Mackandal passa a ser perseguido, os negros celebram um grande pacto de unidade. […] atrás do tambor mãe erguia-se a figura humana de Mackandal. O Mandinga Mackandal, o Homem.O Maneta. O Restituido. O Acontecido.” Carpentier ( 1985,p.26). Note-se que todas as expressões que se referem a Mackandal estão iniciadas com letras maiúscula, demonstrando o poder, influência que ele representava para os negros. Nesse momento nasce seu líder, a qual seguiriam e ainda hoje seguem.

A busca pelo mandinga é intensa, mas os negros  diziam que Mackandal nunca iria ser pego, pois se transformava em animais para se infiltrar nos locais sem ser notado. Neste ponto fica patente a fé que Carpentier afirma ser o elemento primordial do maravilhoso, pois os negros acreditavam piamente que Mackandal se transformava em qualquer coisa, metamorfoseava-se para esconder-se. De acordo com Carpentier (1985) no prólogo de seu livro explica: “ Tudo isso ficou particularmente evidente durante minha permanência no Haiti, quando vivi em contato diário com aquilo que poderíamos chamar de Realidade Maravilhosa”. No trecho abaixo está ilustrado os poderes de transformação de Mackandal em qualquer forma de animal ou inseto que quisesse.

[…]todos sabiam que o lagarto verde, a mariposa noturna, o cachorro desconhecido e o incrível pelicano não eram senão simples disfarces. Dotado do poder de transforma-se em animal de cascos, em ave, peixe ou inseto, Mackandal visitava constantemente as fazendas da Planície para vigiar seus seguidores e saber se ainda  confiavam no seu regresso. (CARPENTIER, 1985,P.22)

 Na citação acima, o leitor pode constatar o poder da fé que Carpentier afirma no prólogo de El reino de este mundo. Todos os escravos seguidores de Mackandal acreditavam nos poderes de transmutação do mandinga em qualquer animal. Desta forma Carpentier vai teorizando na narrativa sobre o vodu e as crenças compartilhadas por toda a comunidade de escravos.

Certo dia, porém, Mackandal aparece e é capturado e queimado vivo. Suas ideias de libertação e união do povo escravo, entretanto, ficaram vivas nos que o ouviam. Carpentier (1985,p.31)»Naquela tarde os escravos regressaram para as fazendas rindo durante todo o trajeto. Mackandal tinha cumprido sua promessa, permanecendo no reino deste mundo».

Mesclados na narrativa ficcional inserem-se alguns fatos históricos uma vez que esta primeira parte vai de 1760 a 1789. Em 1758 se dá a execução do escravo Mackandal, nascido na África é capturado e vendido como escravo. De 1789 a 1799 se dá a Revolução Francesa e em 1791 ocorre à sublevação dos escravos comandados por Bouckman e em 1804 declaram sua independência política. Em 1794 se dá a Convenção Francesa que vota pela abolição da escravidão nas Antilhas Francesas.

Na segunda parte da narrativa se dá a apresentação de Henri Christophe.  Que era cozinheiro e dono do albergue La Corona considerado o lugar que servia a melhor comida das Antilhas. “Acabara de comprar de sua antiga patroa, Mademoiselle Monjeon. Os guisados do negro eram elogiados pelo tempero no justo ponto”. Carpentier (1985, p.36). Quanto ao personagem principal, sua vida havia mudado e após viver as primeiras aventuras com o líder dos negros Mackandal, Ti Noel passa por outra etapa de sua vida: “vinte anos se passaram sobre tudo isso. Ti Noel tinha doze filhos com uma das cozinheiras. A fazenda florescia mais que nunca”. (Carpentier, 1985,p.37)

Mesclada com a fábula temos os fatos históricos: o período da história factual vai de 1789 a 1802. Cronologicamente os fatos que marcaram este período foram: em 1801-Toussaint L’Overture, um antigo escravo, ocupa Santo Domingo e proclama a liberdade dos escravos. Em 1802 se dá a morte do General Leclerc enviado por Napoleão para restaurar o controle  francês; Toussaint é feito prisioneiro e conduzido à França, onde é atirado na prisão onde as doenças e os  maus tratos, sem assistência médica vem a falecer. Em 1802- Jean-Jacques Dessalines, escravo na colônia francesa de Santo Domingo e que havia adotado o nome de seu amo de quem fugiu em 1789 e Henri Christophe dirigem um exército negro contra os franceses. Em 1803- a última parte do contingente francês dirigido por Jean-Baptiste Rochambeau, se rendeu. Em 1804- a ilha se declara independente e assume a forma francesa de seu nome original em arawak que é Haiti.

Percebendo que estavam em maioria, os escravos negros formaram uma rebelião liderada por Toussaint L’Overture, cujo nome completo era François Dominique  Toussain, político e militar haitiano e pelo líder religioso Dutty Boukman para se livrar do domínio da França. Era Bouckman, o jamaicano, quem falava dessa maneira. Embora o trovão ensurdecesse frases inteiras, Ti Noel acreditou entender que algo havia ocorrido na frança, e que uns senhores muito influentes haviam declarado que se devia dar liberdade aos negros. (CARPENTIER, 1985,p.40)

Em 1791, L’Overture instigou os escravos a dizimarem a população mandatária branca, que cada vez mais restringia a liberdade de seus vassalos com políticas racistas. As tropas francesas continuaram resistindo por um bom tempo, mas logo foram derrotadas pelos escravos, que receberam apoio de exércitos ingleses e espanhóis. L’Overture chegou a assumir o governo de Sainto Domingo em 1801, mas acabou sendo aprisionado pelas tropas de Napoleão Bonaparte. Morreu em péssimas condições dois anos depois, em Paris. “

Como é possível constatar, os negros dominavam a situação. A França vivia na época os problemas de sua revolução burguesa (1789). “Os colonos não se conformavam com a declaração dos direitos. “__ O Deus dos brancos ordena o crime. Nossos deuses pedem vingança. Eles guiarão nossos braços e nos darão ajuda” (Carpentier,1985,p.40).Como a França esteve envolvida em seus conflitos internos afrouxaram-se os controles em sua colônia e os colonos sofrem fragorosa derrota. Nessa parte o narrador denuncia os abusos que os brancos cometiam contra todas as filhas dos negros:“Monsieur Lenormand de Mezy, amargurado pelos seus pensamentos saiu com vontade de violentar qualquer das adolescentes que a essa hora enrolavam as folhas de tabaco que dariam depois para seus pais mascarem” (p. 44)e a vingança dos negros contra as mulheres dos brancos na mesma toada. “Ti Noel grudou a boca durante muito tempo […] num barril de vinho espanhol[…] já que sonhava violentar Mademoiselle Floridor”(p.45).Mezy foge para a vizinha Santiago de Cuba, conseguindo levar os seus escravos, entre eles Ti Noel.

O fato é que a revolução durou dois dias de muita violência e a notícia de que a sublevação fora vencida pelos brancos é dada a Monsiuer Lenorman de Mezy para tirá-lo de seu estado catatônico. “ a cabeça do jamaicano Bouckman já se achava cheia de vermes, esverdeada e boquiaberta, no mesmíssimo lugar onde se tinha transformado em cinza fétida a carne do maneta Mackandal”( p.48).

Por essa época o governador da colônia pronunciou uma palavra muito importante para que todos os franceses ficassem atentos: “ o Vaudoux” uma característica cultural que diferenciava e muito os brancos dos negros só que ninguém tinha se dado conta. Nesse momento dá-se o entendimento do amo de Ti Noel, todas as pequenas coisas, os sinais que ele havia desprezado foram cruciais para toda a tragédia que se abateu sobre os colonizadores:  “Compreendia então que um tambor podia significar, em certos casos, algo mais que uma simples pele de cabrito esticada sobre um tronco oco. Tinham, pois, os escravos uma religião secreta que os encorajava e os mantinha unidos nas suas rebeliões. (Carpentier,1985,p.49).

É no final do quarto capítulo que se anuncia o paradeiro de Henri Christophe, já preparando o leitor para os próximos episódios. Quando o amo de Ti Noel, triste por conta dos acontecimentos procura a hospedaria La Corona para comer e beber: “ lembrou que o cozinheiro Henri Christophe tinha deixado o negócio, pouco tempo antes, para vestir o uniforme de artilheiro da colônia.”(Carpentier,1985,p.50)

A partir daí o leitor acompanha a forma como os colonos retiram seu dinheiro e vão embora de Santo Domingo, a forma como os que ficaram destituídos de tudo, as filhas que haviam sido estupradas pelos negros se restabelecendo, a desordem moral e a pobreza chegando para muitos brancos, Ti Noel observa seu amo dilapidar seu capital em jogos de baralho e mulheres até acabar arruinado e empregando-se a frequentar assiduamente as igrejas espanholas acompanhado do negro, que encontrava nesta atmosfera barroca a proximidade de sua cultura e religião. Aspectos estes que podem ser observados nas palavras de Carpentier:

O negro encontrava nas igrejas espanholas um calor de Vodu que nunca havia encontrado nos templos sulpicianos do Cabo. O ouro do barroco, as cabeleiras humanas dos Cristos, o mistério dos confessionários primorosamente trabalhados, o cão dos dominicanos, os dragões esmagados por santos pés, o porco de Santo Antão, a cor morena de São Benedito, as Virgens Negras, os São Jorge, de borzeguins e gibão de ator de tragédia francesa, os instrumentos pastoris que tocavam nas noites de Páscoa, tinham força envolvente e um poder de sedução- semelhantes áqueles  que emanavam dos altares dos houmforts consagrados a Damballah, o Deus Serpente.( CARPENTIER, 1985,p.54)

É possível perceber lendo este trecho que os próprios negros e alguns padres colonos haviam mesclado a crença dos negros á religião católica na tentativa de conquistar também os espíritos dos escravos, este sincretismo está presente o tempo todo na obra e na fala e pensamento de Ti Noel demonstrado pelo narrador onisciente: “ Além disso, São Tiago é Ogun Fai, o marechal das tormentas, e em conjura com ele tinham-se levantado os homens de Bouckman. Por isso Ti Noel, à guisa de oração amiúde recitava para ele um velho canto aprendido com Mackandal.(CARPENTIER,1985,p.54).

Outra crítica na obra é a crítica aos religiosos que também eram donos de escravos e compactuavam com os colonos no tratamento dado aos mesmos, porque enriqueciam, por isso estavam muito mais preocupados em aumentar suas riquezas que com o bem estar dos negros. A única instrução à qual tiveram direito os negros foi a religiosa. Pois era concebida como apta a inculcar a resignação diante da miséria. Sobretudo, era julgada apta a frear a marronnage. (Desejo dos negros de fugir das fazendas e dos maus tratos que sofriam).

O Sexto capitulo intitulado a Nave dos Cães, onde Ti Noel, se dá conta do pouco que os escravos valiam para seus amos, quando pergunta para que haviam tantos cães naquele navio a um marinheiro mulato: “  –  Para onde os levam? –  Para comerem os negros! –  gargalhou o outro” (Carpentier, 1985,p.56). É nesse mesmo capitulo que se apresenta uma importante personagem histórica da trama: Paulina Bonaparte.

Por outra parte os brancos mandaram vir também um veleiro carregado de serpentes para dar morte aos camponeses que ajudassem os negros fujões. “ Mas as serpentes, criaturas de Damballah, morreriam sem ter desovado, desaparecendo ao mesmo tempo que os últimos colonos do antigo regime” (Carpentier,1985,p.64). Ou seja, os brancos trouxeram as armas do negro para lutar contra eles mesmos porque “ Ogum Badagri guiava a carga de arma branca contra as últimas trincheiras da Deuza da Razão”( Carpentier,1985,p.64)

Quanto a Paulina Bonaparte, é mostrada na obra como uma mulher exemplo de devassidão e tudo que uma esposa católica e recatada não era. “ Imaginando contudo, que as mãos de um homem seriam bem mais vigorosas, contratou os serviços de Soliman, antigo empregado de uma casa de banhos, que além de cuidar de seu corpo, friccionava-o com creme de amêndoas, depilava-o e polia-lhe as unhas dos pés” (Carpentier,1985,p.58)

Na terceira parte Ti Noel, já de volta para São Domingos, enquanto relembra os tempos de dominação francesa, se vê na condição de, forçosamente, ajudar a construir a cidadela do rei negro Henri Christophe. Depois se verá que a cidadela construída serviu apenas como o mausoléu para o rei negro. Durante a sua construção houve o desleixo com o plantio e as colheitas.

Um negro, velho mas ainda firme sobre seus pés calejados e cheios de joanetes, abandonou a escuna recém – atracada no cais de São Marcos.

[…] Já ia longe os dias em que um proprietário de Santiago, num lance de cartas, ganhara Ti Noel a Monsieur Lenormand de Mezy, morto pouco depois na mais extrema miséria. Sob o jugo de seu amo cubano conhecera uma vida mais tolerável do que aquela que os franceses da Planicie do Norte impunham a seus escravos.” (CARPENTIER, 1985,p.69)

Até aqui muitas foram as desventuras sentidas e sofridas por Ti Noel, no sacrifício de Mackandal, ele e a população branca assistiram à imolação do negro ameaçador, mas como já demonstramos neste estudo as reações de ambas as partes foram diferentes. Os negros viram encantados o mandinga dar o grande salto e mergulhar no mar de negros e sua morte prenunciava o renascimento e Mackandal continuava vivo ao lado de seu povo. Outro ponto a destacar é que o discurso de Boukman não se deu na língua do escravizador, mas na língua de resistência dos trabalhadores escravizados – a língua KREYÒL – o créole haitiano.

Em toda a obra há a mescla, como já dissemos antes, mas a nível de ênfase voltamos a repetir de personagens ficcionais como Ti Noel, Solimán, Le Normand de Mezy- este representando todos os brancos opressores, e históricos como por exemplo Mackandal, Bouckman, Paulina Bonaparte, que era esposa do General Le Clerc, Henri Christophe.

O espaço físico da narrativa ocorre no Haiti, em Cuba e na França. O marco espiritual da narrativa está todo o tempo mostrando as duas culturas e as duas religiões: a dos brancos: o catolicismo e a dos negros haitianos o Vodu.

A violência contra os negros cometida pelos brancos na voz do narrador onisciente desperta os mais diversos sentimentos no leitor: as violações ás crianças, adolescentes e mulheres negras são uma constante, os assassinatos, as mutilações, o trabalho forçado, a total ausência de liberdade e respeito humano para com os negros, são a causa das sublevações seja dos negros contra os brancos seja dos negros contra seus opressores negros.

Em 1807- Henri Christophe assume o controle. Este era um escravo liberto que depois se converte em dono de escravos, e ele também inspirou o personagem da peça Emperador Jones de Eugene O’Neill. De antigo cozinheiro em Cape Française, Christophe se lança ás armas contra os colonizadores franceses junto con Toussaint-Louverture y Jean-Jacques Dessalines.

Depois de muita luta e resistência que passam pela prisão e desterro de Toussaint-Louverture, os sublevados conseguem derrotar as tropas de Napoleão comandadas pelo general Leclerc,e se estabelece em 1804 a primeira república independente da América, uma república negra cujo primeiro presidente foi Dessalines, como é possível verificar na citação retirada do texto logo abaixo:

 Ti Noel caiu de joelhos e deu graças aos Céus por lhe concederem a graça de regressar à terra dos Grandes Pactos. Porque ele sabia__ e o sabiam todos os negros franceses de Santiago de Cuba__ que o triunfo de Dessalines era fruto de uma tremenda preparação na qual  tinham intervido Loco, Petro, Ogum Ferraille, Brise-Pimba,[…] baixando seu santo com tanta violência que certos homens possuídos haviam sido lançados ao ar ou jogados ao chão pelos conjuros (CARPENTIER,1985,p.71)

No ano de 1809, os espanhóis que contaram com a ajuda britânica, recuperaram o controle da zona leste da ilha. Em 1811- Henri Christophe se fez nomear imperador e assume total controle da ilha.

 Ti Noel compreendeu que se encontrava em Sans-Souci, a residência predileta do Rei Henri Christophe, o mesmo que tinha sido cozinheiro na Rua dos Espanhóis, dono do albergue La Corona, que hoje fundia moedas com suas iniciais, sobre a orgulhosa divisa: “Deus, minha causa e minha espada”. (CARPENTIER,1985,p.76)

A quarta parte Ti Noel, proclama a grandeza das tradições de seu povo e canta as canções de exaltação da liberdade de seus ancestrais africanos e rejeita qualquer tirania, seja ela de brancos ou de negros. Com muita tristeza vê a chegada dos agrimensores, para medirem as propriedades privadas. O dado historiográfico é o ano de  1820. Neste ano, Christophe se suicida para evitar cair nas mãos de suas tropas amotinadas.

 Quase não se ouviu o disparo, porque os tambores batiam já muito perto. A mão de Christophe soltou a arma. Tinha a fronte aberta. O corpo ainda se levantou, ficando suspenso, como se pretendesse dar um passo, antes de cair, cara contra o chão, com todas as suas condecorações. (CARPENTIER,1985, p.94)

À guisa de conclusão.

O rei Henri Christophe, reconheceu em seus últimos momentos que sua queda foi por ter abandonado os seus, sua crença, sua fé, era o castigo de seus deuses.Ti Noel havia retornado várias vezes ao Palácio de Henri Christophe para pegar móveis e outros utensílios que lhe ajudavam a melhorar a vida, porém há  uma comparação dos valores brancos introjetados também na cultura do negro, porque semelhante a Henri Christophe ele se apropria das roupas do rei morto e se veste como os franceses.

[…] o que fazia o velho mais feliz era a posse de uma casaca de Christophe, de seda verde, com os punhos rendados de cor salmão, que exibia a toda hora, realçando seu régio aspecto com um chapéu de palha traçada, achatado e dobrado em forma de bicórneo, no qual colocava uma flor encarnada à guisa de insígnia” (CARPENTIER,1985,p. 108)

Em toda esta obra Ti Noel encarna tanto as metamorfoses de Mackandal quanto á ambiguidade de Henri Christophe e a destruição do Palácio de Sans Souci. Quando tira dos escombros a casaca imperial que pertencera ao rei e veste-a, ele representa toda uma saga de contradições da obra escrita por Alejo Carpentier.

Henri Christophe ao morrer assegura ao Haiti o nascimento do Reino de este mundo, que unirá o Haiti  e suas origens africanas a peculiaridade da nova nação. O ano de 1826, brinda Ti Noel com a   chegada dos agrimensores que organizam um código rural enviados por Jean-Pierre Boyer, militar haitiano e o 2º Presidente da República do Haití.

REFERENCIAS

CHIAMPI. Irlemar> LA LITERATURA NEOBARROCA ANTE LA CRISIS DE LO MODERNO. Crietérios, La Habana, nº32,1994.pp171-183.

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CHIAMPI, Irlemar, O REALISMO MARAVILHOSO: FORMAS E IDEOLOGIA NO ROMANCE HISPANO-AMERICANO / IRLEMAR CHIAMPI. – SÃO PAULO: PERSPECTIVA, 2015. (COLEÇÃO DEBATES; 160 / DIRIGIDA POR J. GUINSBURG)

DONOSO, José. Historia personal del “boom”. Barcelona: Editorial Anagrama, 1987.

FURTADO, Felipe. A construção do Fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte, 1980.

FORNERÍN,Miguel Ángel, em ensaio escrito para a Revista eletronica  Nueva Sociedad,< http://nuso.org/articulo/en-dialogo-con-el-reino-de-este-mundo-y-el-siglo-de-las-luces-de-alejo-carpentier/ > Acesso dia 15/08/2017

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RAMA, Ángel. El Boom em Perspectiva. In: La crítica de la cultura en América Latina. Caracas: Biblioteca Ayacucho, S/D, 2005.

ZAPPONE, Miriam Hisae Yaegasshi: ESTÉTICA DA RECEPÇÃO; IN BONNICI, Thomas,ZOLIN, Lúcia Osana; Teoria literária: abordagens e tendências contemporâneas. 2ª. Ed.rev. e ampl.- Maringá: Eduem, 2005

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