Políticas de Massas, Reforma Agrária e Nacionalização da Exploração do Petróleo no México na Época de Cárdenas entre 1934-1940:um modelo para Hugo Chaves e Evo Morales?

Ival de Assis Cripa

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O final dos anos 90 e o início da primeira década do século XXI na América Latina foram momentos importantes de avanço de governos democráticos e populares, comprometidos com a melhoria das condições materiais das camadas populares no continente. Desse processo faz parte a eleição de Michele Bachelet no Chile para seu primeiro mandato –uma mulher, ex-presa e exilada política, cujo pai morreu na prisão, durante a ditadura Pinochet-, a eleição de Evo Morales na Bolívia, à frente de um movimento intitulado MAS (movimento ao socialismo), a eleição de Hugo Chávez na Venezuela e a eleição de Luis Inácio Lula da Silva no Brasil em 2002 pelo Partido dos Trabalhadores.[1]

 

A polarização política na Bolívia e na Venezuela, gerada nos anos 90 a partir da nacionalização da exploração do gás natural e do programa de reforma agrária do  governo de Evo Morales, bem como a disputa pelo controle das exportações de petróleo, entre as classes dominantes venezuelanas e o governo de Hugo Chávez, fazem parte do processo de luta de classes nesses dois países pelo uso dos recursos naturais e da terra em benefício dessas classes dominantes, ou em prol do investimento em políticas sociais por esses dois governos, visando conquistar o apoio das camadas populares.

 

Se a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado, como afirma Marc Bloch, “talvez não seja útil esforçarmo-nos por compreender o passado se nada sabemos do presente.”[2] Por tais motivos, uma pesquisa sobre os desafios do governo Cárdenas como a que realizamos, ao abordar a nacionalização da exploração do petróleo e a reforma agrária, precisa levar em consideração que os governos de Evo Morales e Hugo Chávez e seus sucessores vivenciaram e vivenciam contradições e dilemas que também foram vivenciados pelo governo de Lázaro Cárdenas no México entre 1934 e 1940. Tratam-se de “realidades aparentadas”, para usar uma expressão de Marc Bloch, haja vista que “(…) não há verdadeiro conhecimento sem um certo teclado de comparação. Contanto, está claro, que o confronto incida sobre realidades ao mesmo tempo diferentes e, contudo, aparentadas.” [3]

 

Sob o risco do anacronismo, pesadelo dos historiadores, “pecado capital contra o método, do qual basta apenas o nome para constituir uma acusação infamante, a acusação –em suma– de não ser um historiador, já que se maneja o tempo e os tempos de maneira errônea.”[4] Todavia, ao evitar o anacronismo, diz Loraux, os historiadores correm o risco de serem entravados e impedidos de audácia, ao contrário dos antropólogos que recorrem sem perturbação de consciência à prática da analogia: “De fato, tal censura impede qualquer consideração de um ‘outro tempo’ no interior do tempo dos historiadores.” [5] Ao fazer o “elogio do anacronismo”, Nicole Loraux convida os historiadores “a se colocar à escuta de nosso tempo de incertezas apegando-se a tudo que ultrapassa o tempo da narração ordenada: aos embalos assim como as ilhotas de imobilidade que negam o tempo na história, mas que fazem o tempo da história.” [6]

 

Gostaríamos de elucidar que não se trata, nesse artigo, de realizar um estudo comparado sobre as experiências de nacionalização dos recursos naturais no México e na Bolívia, nem sobre a luta em torno do controle da exportação de petróleo na Venezuela e no México. Se o ofício dos historiadores consiste, segundo Marc Bloch, em “ir ao passado com questões do presente” e voltar ao presente “com base no que se compreendeu do passado”, o que pretendemos é estabelecer alguns laços de inteligibilidade entre épocas distintas, haja vista que “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja

 

 

mais útil esforçarmo-nos por compreender o passado, se nada sabemos do presente”.[7] Trata-se de não estabelecer uma divisão do trabalho entre os historiadores, tomados como um “punhado de antiquários ocupados por deleite macabro, em desenfaixar os deuses mortos; de outra sociólogos, economistas, publicistas: os únicos exploradores de coisas vivas…” [8]

 

I-O controle da exportação de petróleo na Venezuela e a nacionalização da exploração do gás natural na Bolívia

 

Tanto para o governo de Hugo Chávez, como para o governo de Evo Morales, o petróleo e o gás foram mobilizados como recursos políticos nos projetos de ambos os candidatos, visando implementar políticas públicas redistributivistas. Na Venezuela, o controle da indústria petroleira era uma questão de sobrevivência política. Uma parte significativa do conflito entre Chávez e a classe política da oposição ocorreu pelo controle do recurso petrolífero. Chávez, desde o início de sua gestão, compreendeu que sua sobrevivência política estava vinculada ao comportamento dos preços internacionais do petróleo e a retomada do controle regulatório legal da atividade da indústria petrolífera pelo Estado. Na política externa, buscou a recuperação internacional dos preços do petróleo e da capacidade negociadora da OPEP, fazendo com essa organização volta-se a definir os preços internacionais de petróleo, como era entre 1974 e 1983.

 

Com esses objetivos, Chávez realizou algumas visitas pragmáticas e arriscadas a alguns países do Oriente Médio. Foram polêmicas visitas à Sadam Hussein e Mohamar Kadafi. De forma complementar, promoveu uma coalizão com a Rússia e com a Noruega, visando fortalecer os preços internacionais de petróleo. No plano interno, Chávez tentou devolver ao Estado a capacidade regulatória da indústria petrolífera. Entre os anos 80 e 90, sucessivos governos na Venezuela implementaram a política de apertura petroleira, dando mais autonomia à estatal Petróleos da Venezuela, para gerenciar sem fiscalização de outros órgãos oficiais, contratos com empresas multinacionais, a administração de refinarias e postos de gasolina no exterior (25 mil postos só nos EUA!!). A PDVSA criou filiais no exterior (nos EUA, a Citgo). Criou-se, nesse período uma estatal com absoluta autonomia de outras agências estatais, como o Ministério de Minas e Hidrocarburetos, ao qual ela deveria estar subordinada. A estatal, com uma crescente autonomia frente ao Estado, começa a implementar uma política petroleira que ia além dos interesses nacionais.

 

As críticas de Chávez à Empresa apontavam a criação de um Estado dentro do estado. Contra essa situação, ele decretou a Lei Orgânica dos Hidrocarburetos Gasosos em setembro de 1999, pela qual o Estado retoma a gestão do gás natural e em 2001 a Lei dos Hidrocarburetos. Isso gerou um confronto com setores da PDVSA, beneficiados pela política anterior. A partir de então, o conflito entre a oposição e o governo, ao menos entre 2002 e 2003, deu-se em torno da disputa pelo controle da PVSA. O governo e a oposição foram medindo força até que, após uma gigantesca passeata organizada pela oposição em 11 de abril de 2002 (um pouco antes, Chávez destituiu publicamente o presidente da PDVSA e os seus altos cargos gerenciais). A passeata culminou com um golpe, que durou 48 horas, uma tentativa da oposição de tirar Chávez do poder por qualquer meio.

 

Ironicamente o objetivo de derrubar Chávez não foi conseguido, mas terminada a greve a economia ficou gravemente danificada (queda de mais de 20% do PIB), com o fechamento de várias empresas privadas, médias e pequenas e desemprego de 15 a 20%. O resultado da tentativa do golpe foi a criação de condições para o controle institucional no Executivo e no Legislativo quase absoluto por parte dos Chavistas. O referendo presidencial significou, para a oposição, uma oportunidade de participação efetiva nessas instâncias para derrotar Chávez. Como Chávez se defendeu? Com uma política redistributivista de renda de enorme eficácia e impacto social, para a qual a oposição não teve alternativa ou meios para contra-atacar, e que acabaria assegurando em definitivo a vitória do presidente Chávez no referendo que pretendia revogar seu mandato.

 

Após a greve petroleira de 2003, o governo implementou o programa conhecido como “missiones”, que são planos sociais emergenciais com impacto positivo entre amplos setores populares e parte dos setores de classe média: 1) o programa de saúde bairro adentro, pelo qual médicos cubanos prestavam consultas diárias e davam plantão nos bairros populares; 2) o programa mercal, que é uma espécie de feira popular, com mais de 20 produtos da cesta básica à preços subsidiados; 3) o programa de distribuição gratuita de alimentação pronta para a população que vive em condições de indigência. A longo prazo, elaborou também um programa de educação em três níveis, estimulando o reingresso na escola, a alfabetização de mais de 1 milhão e 500 mil pessoas, o reingresso no segundo grau e a criação da universidade Bolivariana, que propunha incorporar 500 mil estudantes sem vaga no setor público e privado.

 

O petróleo desempenhou um papel de grande importância, pois as estratégias redistributivistas dependiam dele. Foi criado na PDVSA o fundo de Desenvolvimento Econômico e Social, para financiar os projetos citados e as obras de infraestrutura no país. A política redistributivista foi um divisor de águas nas relações entre o governo e a oposição, porque seus efeitos paralisaram a oposição e diminuíram seu espaço no Congresso.

 

Na Bolívia, os recursos gerados a partir dos hidrocarburetos também desempenham, como na Venezuela, um papel importante para a compreensão dos últimos acontecimentos da sua história política recente. A Bolívia possui uma reserva de 108 bilhões de metros cúbicos de gás natural, sendo a segunda maior reserva de gás da América do Sul depois da Venezuela. Para um país cujo PIB é de 8,4 bilhões de dólares, trata-se de uma importante fonte de dividendos. Na década de 90, a produção de hidrocarburetos foi o segmento mais dinâmico da sua economia, concentrando em 1994, 32,3% das atividades econômicas da Bolívia. Se houve um crescimento econômico na Bolívia de 3,6% e da renda per capita de 1,3%, em 2004, em parte deve-se à recuperação econômica do país, ao aumento do consumo privado e do investimento público, bem como o ajuste fiscal. Mas o motivo principal a ser considerado, para essas melhorias, foi o aumento da demanda externa de gás natural e petróleo, paralelo à elevação dos preços internacionais do barril de petróleo. O setor de hidrocarburetos apresentou um crescimento de exportações de 68%, beneficiado pelo aumento da demanda de gás natural boliviano, principalmente do Brasil e pela abertura do mercado argentino, a partir do segundo semestre de 2004.

 

O crescimento da demanda externa e dos preços internacionais dos hidrocarburetos viabilizou a implementação de um projeto de desenvolvimento nacional coadunado com as necessidades locais de crescimento estrutural e social. Contudo, a aparente recuperação econômica em 2004 não teve efeitos sociais significativos. A taxa de desemprego nas áreas urbanas continuaria naquela época em níveis elevados (8,7%) e no setor informal, o índice de desemprego era de 63,6% em 2004. Os índices de pobreza continuariam crescendo no ritmo de 85 mil pessoas por ano. Como em outros países da América Latina, a recuperação econômica não criou uma política capaz de frear o ajuste fiscal e a redução do investimento público nos setores de saúde, educação, saneamento básico e proteção social.

 

Criou-se, então, uma situação de desequilíbrio, em que o crescimento econômico na Bolívia não vinha acompanhado da elevação de índices sociais de desenvolvimento. Existem no país dois importantes gasodutos, que conduzem o produto para o Brasil e garantem a maior parte da exportação de gás: um gasoduto, com capacidade de 30 milhões de metros cúbicos diários e o segundo com 2,4 milhões de MCD. Contudo, para La Paz eram exportados apenas 0,4 milhões.

 

Na década de 90, a Bolívia havia adotado um modelo de privatização das empresas estatais, visando valorizar o patrimônio das mesmas a partir da associação com capital privado. Na prática, companhias públicas foram entregues ao controle de capitais externos. A empresa YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos), foi distribuída entre os consórcios Enron-Shell, à BP-Amoco e a Repsol-YPF, com a mudança da lei dos hidrocarburetos, o que diminuiu a cobrança dos impostos sobre os recursos naturais 50%, para 18%.

 

O governo Cárdenas, a reforma agrária e a nacionalização do petróleo no México: um modelo seguido por Chávez e Morales?

 

Apesar de estarmos nos referindo à contextos políticos bem distintos, o da América Latina do final do século XX e da primeira década do século XXI e a gestão presidencial de Lázaro Cárdenas no México (1934-1940), o governo Cárdenas viveu contradições semelhantes às contradições vivenciadas por Evo Morales na Bolívia, que enfrentou interesses internos e externos contrários à nacionalização da exploração do gás natural, visando investir os recursos da exportação do gás natural  na melhoria das condições materiais das camadas populares na Bolívia. Na Venezuela, Hugo Chávez ao quebrar com o monopólio da exportação do Petróleo exercido pelas classes dominantes venezuelanas, buscou usar esses recursos na implementação de programas sociais que garantissem a constituição de uma nova hegemonia política que lhe dessem respaldo político para enfrentar a oposição das classes dominantes venezuelanas.

 

Se não temos base empírica para afirmar que gestão cardenista serviu de modelo para a Bolívia e a Venezuela, a semelhança entre os dilemas enfrentados pelo governo Cárdenas e por esses governos, apesar de estarem inseridos em contextos históricos bem distintos, merece um exame mais aprofundado. Acreditamos que a recuperação da experiência da gestão cardenista pode ajudar a compreender os dilemas e impasses dos governos de Evo Morales na Bolívia e de Hugo Chávez na Venezuela.

 

No México, a nacionalização da exploração do petróleo e a reforma agrária, foram ações logradas graças ao apoio de camponeses, operários, intelectuais, mulheres, partidos políticos de esquerda e centro esquerda e sindicatos comprometidos com a construção de uma nova hegemonia no campo político mexicano dos anos 30 do século XX.[9] Por outro lado, o apoio das massas camponesas e operárias no México foi conquistado graças ao avanço dos direitos sociais e a melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras no México, garantidos a partir de ações no campo econômico como a reforma agrária e a nacionalização do petróleo que permitiram esses avanços na área social do México dos anos 30.

 

A utilização do termo populista, aplicado de Cárdenas, Vargas e Perón nos anos 30, assim como o governo de Hugo Chávez, tende a simplificar a análise desses governos. Para compreender a força das massas na cena política do México nos anos 30, acreditamos que seja necessário fugir das noções de “irracionalidade” ou “manipulação” das mesmas por um líder “populista”. O conceito de populismo foi utilizado, com relação à América Latina, para expressar o fenômeno de emergência das classes populares na vida política dos países deste continente, a partir da década de trinta. Mas, algumas vertentes de interpretação, conceberam a presença das massas na cena política pelas “noções de manipulação e de atraso das classes populares, sem levar em conta as diferentes formas de luta e de controle social que ocorreram no século XX”.[10]

 

Entre 1934 e 1938, o governo Cárdenas foi capaz de implementar a política de massas para solucionar os conflitos dentro da ordem estabelecida. Ele conseguiu unificar camponeses, militares, intelectuais, professores, acumulando forças para implementar um amplo programa de reformas sociais que garantiu as principais conquistas dos trabalhadores mexicanos.

 

As políticas de massas foram, nos anos trinta, uma das maneiras de evitar a radicalização política das mesmas, por parte dos Estados capitalistas, diante da crise econômica e política dos anos trinta.[11] Onde havia condições econômicas e políticas, foi possível conceder alguns direitos e realizar um programa de reformas sociais para as massas, aplacando seu descontentamento. Tratava-se de uma estratégia mais ampla, para tentar solucionar os conflitos sociais, dentro da ordem estabelecida. A defesa da unificação de camponeses e operários, junto a outros segmentos da sociedade, em prol da implementação de um programa de reformas sociais durante o governo Cárdenas, foi uma das faces da política de massas do cardenismo. Não se tratava de evitar a Revolução popular, pois ela já havia eclodido há mais de vinte anos no México. Cárdenas, quando se dirigiu às massas, o fez em defesa da consolidação dos ideais e promessas da Revolução Mexicana. Procurou estabelecer um diálogo com as camadas populares para firmar um compromisso com as “conquistas sociais da Revolução”, como dizia.

 

A unificação das massas para a constituição de uma nova hegemonia política

 

Em seus discursos, Cárdenas apela à unificação operário-camponesa, com outros segmentos da sociedade mexicana: classes médias, intelectuais, comunidades indígenas e mulheres, definindo papéis e estabelecendo o lugar e o caráter da participação de cada grupo social. Esses segmentos foram os principais alvos dos discursos de Cárdenas, desde a campanha presidencial, em que apelava para a sua unificação em prol de sua obra revolucionária:

 

contamos com o entusiasmo e a boa vontade das massas proletárias; com o idealismo da juventude, com  o desejo de liberação das classes  indígenas, com o trabalho cada dia mais fecundo da mulher mexicana,  em fim com o afã de cooperação de todos os setores que compõem nossa nacionalidade.[12]

 

Com relação aos camponeses, tratava-se de entregar-lhes terras e conquistar seu apoio. Consciente da importância do apoio camponês e de seus compromissos com tal segmento social, Cárdenas afirma: Entregarei aos camponeses o mauser com que fizeram a Revolução, para que a defendam, o ejido e a escola.[13]

 

Entregar as armas aos camponeses foi a estratégia para enfrentar as forças conservadoras da liderança mais autoritária da Revolução Mexicana, encarnada na figura do general Calles que se autodenominava o Chefe Máximo da Revolução. Após tomar posse em 1934,

 

Cárdenas não desconhecia os problemas da população, nem o descrédito em que haviam caído os governos anteriores (…) Por isso decidiu iniciar sua gestão com o apoio de um grupo alheio as facções políticas organizadas até então. A condição para vencer resistências e oposições seria uma educação de novo tipo, ‘socialista’, base do progresso, apoio a industrialização e eixo da economia.[14]

 

Na verdade, a eleição de Cárdenas pelo PNR não seria possível sem o apoio da CCM (Confederação dos Camponeses Mexicanos) e da CGOCM (Confederación General de los Obreros y Campesinos de México). A CCM, especialmente, foi criada em 1933 para atender as demandas camponesas por terra e participação política, e também para viabilizar a eleição de um candidato agrarista pelo PNR, em oposição à linha conservadora adotada por Calles e seu grupo, unificando camponeses e operários.

 

Após ser eleito, Cárdenas apelou às massas, convocando-as para a formação de uma frente única dos trabalhadores, “um ato de solidariedade com o programa ideológico da Revolução”, afirmando que o programa educacional colocado em prática visava garantir a melhoria das condições materiais e espirituais de vida dos trabalhadores: “(…) a educação que será implantada, segue o propósito de organizar  todos os trabalhadores do país, o Estado, dentro um espírito socialista, estimulando as classes (…), reconhecendo os justos direitos que têm  de sindicalizarse os operários.[15]

 

Com relação ao papel do Estado, coloca em prática seu programa de governo, o Plan Sexenal era indispensável para: “a formação de uma economia nacional dirigida e regulada pelo Estado, que libere  o México do caráter de país de economía colonial, campo de exploração do  trabalho humano (…) A formação de uma economia propria nos livrará deste  gênero de capitalismo”.[16] Após os primeiros seis meses de governo, Cárdenas conseguiu mudar o clima político do país – não havia mais censura na imprensa e seus opositores podiam se manifestar livremente, as greves resolviam-se sem intervenção do governo, pois pela primeira vez as organizações operárias gozavam de ampla liberdade. O movimento operário recebeu um enorme estímulo do chefe do executivo e converteu-se em fator decisivo do poder de Cárdenas nos embates com Calles. Os sindicatos mexicanos mais importantes uniram-se num comitê de defesa proletária em apoio à Cárdenas, ameaçando realizar uma greve geral.

 

Primeiro o solo, depois o subsolo: a reforma agrária e a nacionalização da exploração do petróleo

 

Nos anos 30, segundo dados apresentados por Gilly, o México com seus quase 17 milhões de habitantes, era um país em que 70,2% da população trabalhava no campo. Parte desses camponeses (26,2%) viviam em “pueblos”, de 200 mil habitantes, ou (23,1%) de 500 mil habitantes. A maioria das pequenas comunidades estava sem escola, e mais de 20% dela só falava o idioma indígena e 60%, trabalhava nas terras em regime comunal.[17]

 

Desde a eclosão do movimento revolucionário, podemos discernir três momentos: o primeiro, da campanha de Madero, em 1910, até a queda de Carranza em 1920; o segundo, entre os governos de Obregón, Calles e o Maximato (1920-1935); e o terceiro, durante a gestão cardenista (1934-1940). Durante o primeiro período, a questão agrária foi discutida apenas pelos grupos revolucionários que estavam em luta, mas o conflito agrário não foi solucionado. No segundo período, passa-se do plano teórico para a ação, mas as divisões dos latifúndios são pouco expressivas e as ações moderadas. Somente durante o governo Cárdenas, a estrutura fundiária foi modificada e o latifúndio foi desmontado em grande parte. O artigo 27 da Constituição de 1917 fixava claramente que os ejidos deveriam ser restituídos às comunidades que haviam perdido suas terras: “Los pueblos, rancherías, comunidades que carezcan de tierras y aguas, o no las tengan en cantidad suficiente para las necesidades de su población, tendrán derecho a que se les dote de ellas, tomándolas  de las propiedades  inmediatas, respetando siempre la pequeña propiedad.” [18]

 

Apesar do artigo 27 da Constituição Mexicana ter sido redigido no governo de Carranza, não houve avanços na questão agrária durante seu mandato; pouco mais de 170 mil hectares foram repartidos. Já no governo de Obregón, foram divididos 1.557.983 hectares, quase dez vezes mais, que nos anteriores. Mas segundo dados apresentados por Medin, em 1930 existiam 70.9222.065 hectares de terras distribuídas em latifúndios com mais de 10 mil hectares. Durante o governo Calles (1924-1928), além da distribuição das terras aumentar, incrementaram-se o crédito agrícola e os investimentos em obras de irrigação. Porém, Calles era contra a organização comunal dos camponeses em ejidos e preferia apoiar a pequena propriedade familiar e os grandes terratenentes. Muitas iniciativas positivas de Calles foram limitadas pela descaracterização progressiva de seu regime que, da defesa do interesse popular, passou a satisfazer, também, dos interesses das novas oligarquias políticas, econômicas e sociais, formadas por muitas das lideranças revolucionárias.

 

Os movimentos regionais, segundo Gilly, eram uma mediação indispensável para que a voz fragmentada dos camponeses nos pueblos fosse ouvida com um só clamor no país: a luta pela terra. Das alianças regionais sustentadas por camponeses, a única que teve condições de conquistar um governo em âmbito nacional foi a do grupo de Lázaro Cárdenas, em Michoacán. Fora chefe de operações militares em várias regiões e participou de várias ações militares, mantendo boas relações no exército. Em Michoacán, entre 1928 e 1932, formulou seu programa agrarista de aliança com a CRMT (Confederação Revolucionária Mexicana do Trabalho), de uma maneira bastante diferenciada do agrarismo conservador do General Cedillo e do radicalismo agrário dos socialistas, em que a base do programa era a aliança com os camponeses em defesa do Estado Nacional.

 

Nos anos 30, não só em Michoacán, mas em outras regiões como Querétaro, Tlaxcala, Chiapas, Guerrero, Estado do México, Zacatecas e Tamaulipas, diz Gilly, os líderes e os caciques apareciam como mediadores entre suas clientelas de camponeses e o poder, formalizando pactos entre as organizações camponesas e os governos. Ainda que sujeitos à mediação dessas lideranças que desvirtuavam suas reivindicações, o campesinato estava tão mobilizado, que, em janeiro de 1934, o governo foi obrigado a criar o Departamento Agrário e estipular o primeiro código agrário, simplificando a legislação referente à reforma agrária. Cárdenas, ao assumir a presidência, pautou seu programa agrário pela defesa do ejido e adotou uma política agrarista própria, com objetivo de liquidar, de vez, com o latifúndio, diferenciando-se de seus antecessores. Quando apresentou seu programa de governo à nação, el plan sexenal, afirmou que um dos pontos principais era o programa agrário, que consistia na distribuição das terras para todos os camponeses:

 

Que haya tierra para todos en cantidad suficiente, no sólo para resolver el problema económico  en cada familia, mejorando su alimentación, su vestuario, su alojamiento y permitiéndole la educación de los niños y aun de los adultos, sino para que aumente la producción agrícola (…) Quiere la Revolución que los productos de cada ejido vayan a los mercados de consumo a fin de ayudar a la República entera a lograr un nivel superior de vida.[19]

 

O presidente era favorável ao investimento nas obras de irrigação, crédito e educação para os camponeses e defendia a luta contra o latifúndio, em favor dos ejidos e da pequena propriedade. Em termos de ritmo e de proporções, a reforma agrária cardenista foi uma verdadeira proeza, pois um enorme contingente de camponeses, antes marginalizados, tiveram seus direitos reconhecidos. Tratava-se de modificar o sistema de propriedade: “La agricultura es una de nuestras mayores riquezas (…) Nada se cambiará en ella, sin embargo, si su aspecto más extenso y más hondo, el sistema de propiedad de la tierra, no se termina de cambiar.”[20]

 

Muito antes da nacionalização do petróleo, a reforma agrária alterava as relações entre as massas e os donos do capital, nacionais e estrangeiros. A revolução na posse da terra e o desenvolvimento econômico entre 1934 e 1940, deram-se em decorrência da pressão política das massas operárias e camponesas, na cena política. Tzvi Medin teve clareza de que a ascensão de Cárdenas representou um novo elenco de forças sociais composta por operários, camponeses e classes médias em um bloco de poder em defesa dos seus interesses e contra os interesses do capital exterior.

 

Em outubro de 1936, frente um conflito entre camponeses e as “guardas brancas”, contratadas pelos “terratenientes”, o governo federal lançou o programa de reforma agrária de La Laguna:

 

El problema ejidal de La Laguna es el más serio que resuelve hoy el régimen de la Revolución. La fuerte organización de los capitalistas propietarios y su oposición constante a que sus propiedades se reduzcan al límite señalado por el Código Agrario han venido provocando agitaciones, queriendo por medio de la prensa y por distintos medios estorbar la acción agraria del Gobierno.[21]

 

Ao lançar o programa de reforma agrária de La Laguna, segundo Gilly, Cárdenas preparou uma resposta para o problema, não no terreno militar, mas no terreno social. Afirmou melhor sua posição entre os camponeses, que era a maior parte da população, e entre os militares, ciente de que, um presidente mexicano, ou se afirma nos dois primeiros anos de gestão, ou nunca mais. Sua ação em La Laguna foi exemplar, pois era uma região estratégica em que os camponeses acumulavam experiências por longas décadas:

 

sabiam como se trabalha, como se luta, o que esperar da vida e do futuro. Eram diaristas e eram camponeses. Queriam salários e ao mesmo tempo queriam terras e água(…) haviam se envolvido com Villa ou com Carranza. Era no coração de La Laguna onde, na maré alta de 1914, haviam firmado o pacto de Torreón, aquele que em sua ‘clausula de ouro’ prometia a divisão das terras.[22]

 

O programa cardenista pressupunha um itinerário para colocar em prática o artigo 27 da Constituição, diz Gilly, em que primeiro deveria ser expropriado o solo, depois o subsolo. Para fazê-lo, o apoio das massas camponesas e operárias era fundamental: “Los trabajadores de la fábrica y los del campo, que están unidos por comunes intereses de clase, no deben luchar aislados, ni establecer pugnas entre sí, que vengan a extorsionar a unos por exigencia de otros.[23]

 

Cárdenas esperou com paciência, até que a única solução fosse a ação do governo que, num só golpe, sem utilizar armas, mas com o apoio das massas camponesas, expropriaria as grandes fazendas na região, ampliando sua base social entre os camponeses e dividindo as forças políticas que se opunham ao seu programa agrário. O governo dos Estados Unidos protestou contra as expropriações das terras de propriedade norte-americana no vale Yaqui. Na verdade, o centro do problema era o artigo 27 da Constituição, que abordava a questão da terra e do petróleo, ou seja, do solo e do subsolo, para usar a expressão de Gilly. O artigo 27, desde sua aprovação foi rechaçado pelos Estados Unidos, em termos de política internacional. Aquilo que Cárdenas denominava uma interpretação revolucionária da lei, em defesa da soberania, caberia ao Estado dirigir a divisão das terras e a organização da produção:

 

La ingerencia del Estado en la dirección superior de la economía nacional, es, por ambos capítulos, una función de orden público; en lo social garantizar autonomía económica a los pueblos dotados; y en lo económico, al cuidar que no se reduzca el volumen global de la producción agrícola, en detrimento del consumo y del comercio exterior.[24]

 

O conflito petroleiro surgiu, em princípio, como consequência do choque entre as companhias e o movimento operário, representado pelo Sindicato de Trabalhadores Petroleiros de la República Mexicana (STPRM), filiado à CROM. Em 26 de julho de 1936, foi fixado pelas Juntas de Conciliación y Arbitraje um contrato de trabalho coletivo em que se elevassem os salários e prestações. As companhias não aceitaram o acordo. Cárdenas, sempre que necessário, conteve a ação do movimento operário, mas nesse caso apoiou e usou-o em prol da luta pela independência econômica. Ao se pronunciar perante o Senado para tratar do problema, afirmou:

 

El gobierno considera que vive momentos de especial importancia en su magnífica oportunidad para que el país pueda colocarse en una posición de verdadera independencia política y económica, frente a la intervención  constante que en nuestros asuntos han querido tener las compañías petroleras. Éstas quieren intervenir en la situación política y económica del país y eso no podemos admitirlo. El articulo 27 y toda la legislación, obligan al gobierno a quitar privilegios indebidos a las compañías, que siempre han querido hacer uso de su fuerza económica.[25]

 

 

Segundo o artigo 27 da Constituição revolucionária de 1917, tal prerrogativa dava ao Estado o direito de intervir na exploração das riquezas naturais disponíveis, todas as vezes que o interesse público fosse afetado. Aos poucos, o conflito caracterizado pelo confronto entre operários e empresas estrangeiras passou a ser entre empresas petroleiras e governo, em defesa da soberania nacional:

 

Las compañías no han seguido una actitud de conciliación, precisamente apoyadas en su situación de privilegio. Han restringido sus operaciones de crédito, que representan un movimiento anual de treinta a cuarenta millones y esto ha ocasionado ciertos trastornos que podrían considerarse graves si no fueran artificiales. Más estamos en posibilidad y así lo considero, de afrontar patrióticamente esta oposición que ellas representan. Será un buen paso del que saldrá beneficiado el país, pues cuenta el Ejecutivo con apoyo del pueblo y con la colaboración de las cámaras.[26]

 

 

Cárdenas, na noite em que decidiu expropriar as companhias de petróleo, recordou junto com o general Francisco Múgica a ação das companhias de petróleo em “la Huasteca Varaceruzana”, quando foi chefe militar na região: “Acuérdese de las vergüenzas que sufren los ciudadanos mexicanos cuando transitan por favor, por las brechas que llaman suyas las compañías; hasta la fecha no hay una ley formal y bien estudiada que trate de remediar esta ignominia.”[27]

 

O governo Cárdenas apoiava-se no compromisso com o bem-estar social das massas; no momento que as empresas não respeitavam a lei e recusavam pagar os aumentos salariais, o pacto social estava ameaçado. O problema de aumento de salários passou a ser, então, tomado como uma questão de soberania nacional. As companhias não aceitavam as demandas dos operários e estes não aceitavam as contrapropostas das empresas, tornando necessária a intervenção do governo, através da Junta Federal de Conciliação e Arbitragem. Um grupo de peritos selecionado pela junta, foi incumbido de verificar a situação econômica das empresas para ver se elas estavam em condições de satisfazer as exigências dos operários. A perícia constatou que as principais companhias operantes no país eram parte de um grupo norte-americano ou inglês e que, além de obterem alta lucratividade, pagavam baixos salários aos empregados mexicanos, discriminados com relação aos norte-americanos que gozavam de isenção fiscal. Uma vez que as empresas não aceitavam pagar o aumento aos trabalhadores, um estudo da comissão “Fue favorable a los trabajadores, señalando que las empresas pueden cubrir el aumento de veinteséis millones trescientos mil pesos (…) y se niegan a obedecer el fallo de la Suprema Corte y las disposiciones de autoridades responsables que han intervenido en el problema.”[28]

 

A conjuntura internacional era favorável ao México, pois os Estados Unidos precisavam manter boas relações nas suas fronteiras:

 

Las circunstancias no han sido propicias, por la presión internacional y por problemas internos. Pero hoy que las condiciones son diferentes, que el país no registra luchas armadas y que está en puerta una nueva guerra mundial, y que Inglaterra y Estados Unidos hablan frecuentemente en favor de las democracias y de respeto a la soberanía de los países, es oporturno ver si los gobiernos que así se manifiestan cumplen al hacer uso de sus derechos de soberanía.[29]

 

No dia 18 de março de 1938, o governo Cárdenas deu um passo importante em defesa da independência econômica e nacionalizou as companhias de petróleo. Para ele, tratava-se não mais de uma questão trabalhista, mas de uma questão de dignidade do México e de patriotismo das massas que deveriam apoiá-lo: “He hablado al pueblo pidiendo su respaldo, no sólo por la reivindicación de la riqueza petrolera, sino por la dignidad de México que pretenden burlar extranjeros que han obtenido grandes beneficios de nuestros recursos naturales, y que abusan considerándose ajenos a los problemas del país…”[30]

 

A nacionalização da exploração de petróleo justificava-se pelos seguintes motivos:

 

Las compañías petroleras han gozado durante muchos años, lo más de su existencia, de grandes privilegios para su desarrollo y expansión; franquías aduanales; de exenciones fiscales y de prerrogativas innumerables, y cuyos factores de privilegios unidos a la prodigiosa potencialidad de los mantos petrolíferos que la nación les concesionó, muchas veces contra su voluntad y contra el derecho público, significan casi la totalidad del verdadero capital de que se habla (…) ¿En cuál centro de actividad petrolífera, en cambio, no existe una policía privada destinada a salvaguardar intereses particulares, egoístas y alguna vez ilegales? De estas agrupaciones, autorizadas o no por el gobierno, hay muchas historias de atropellos, de abusos y de asesinatos siempre en beneficio de las empresas (…).[31]

 

No dia 22 de março, o governo assumiu dois compromissos, o de não continuar expropriando outras empresas e o de pagar indenizações às companhias de petróleo: “Cárdenas estava buscando por diversas vias uma diminuição das pressões. Uma política de enfrentamento crescente poderia incidir sobre a fragilidade de alguns de seus apoios, radicalizar outras forças para ir mais longe, pondo em perigo a unidade 18 de março e arriscar a deixar que a condução do conflito escapasse ao seu controle”.[32]

 

A expropriação petroleira, segundo Gilly, ficou marcada no imaginário coletivo como um momento mágico da vida nacional, “no imaginário coletivo, era a revanche da guerra do Texas e do tratado de Guadalupe Hidalgo, a recuperação do subsolo das mãos de quem a menos de um Século havia levado a metade do solo herdado da Nova Espanha”.[33] O presidente Roosevelt reconheceu a legitimidade da ação do governo mexicano, pois sua maior preocupação era a manutenção da unidade no continente americano e Cárdenas sabia que a conjuntura internacional lhe permitia dar um passo importante em defesa da independência econômica.

 

Sobre a venda de petróleo mexicano Cárdenas afirmou: “Si los países demócratas nos cierran sus mercados, nosotros no cerramos los pozos (…) México venderá su petróleo al cliente que primero lo solicite y que mejor pague, ya que si se les había dado preferencia a los países demócratas eran éstos quienes no se presentaban a adquirirlo.”[34] Cárdenas não postulava uma ruptura definitiva, mas sim uma reordenação das relações com o capital exterior:

 

La inversión de capital extranjero en México será provechosa si los inversionistas se ajustan a las leyes y obran de buena fe en nuestro país con un sentido verdaderamente humano para sus trabajadores. El capital extranjero podría hacer inversiones en la instalación de plantas siderúrgicas, de abonos para la agricultura, en la minería y en otras distintas industrias, así como en financiar obras que puede realizar el propio gobierno.[35]

 

A nacionalização da exploração do petróleo no México visava reformular as relações com o capital estrangeiro, submetendo-o aos “interesses nacionais”, haja vista que as companhias de exploração de petróleo consideravam México uma colônia de extração de matérias-primas, em que ao pagar baixos salários e obter  isenção de impostos, alcançavam alta lucratividade.

 

Considerações Finais

 

Os governos de Hugo Chávez e de Evo Morales, assim como o governo Cárdenas, mobilizaram a exploração dos recursos naturais, como recursos políticos para realizar suas promessas de campanha. Na Venezuela, o controle da indústria petroleira era uma questão de sobrevivência política, Chávez compreendeu que sua sobrevivência política estava atrelada ao comportamento dos preços internacionais do petróleo.

 

Para contribuir com a recuperação internacional dos preços do petróleo e da capacidade negociadora da OPEP, Chávez realizou algumas visitas pragmáticas e arriscadas a alguns países do Oriente Médio. Foram as polêmicas visitas à Sadam Hussein e Mohamar Kadafi. De forma complementar, promoveu uma coalizão com a Rússia e com a Noruega, visando fortalecer os preços internacionais de petróleo.

 

Entre os anos de 2002 e 2003, o conflito entre a oposição e o governo deu-se em torno da disputa pelo controle da PVSA, que passaram a medir forças até que, após uma gigantesca passeata organizada pela oposição em 11 de abril de 2002, a oposição deu um golpe que durou 48 horas.

 

O objetivo de derrubar Chávez não foi conseguido e terminada a greve a economia ficou gravemente danificada: queda de mais de 20% do PIB, fechamento de várias empresas privadas, médias e pequenas e desemprego de 15 a 20%. O resultado da tentativa do golpe foi a criação de condições para o controle institucional no Executivo e no Legislativo, quase absoluto por parte dos Chavistas. O referendo presidencial significou, para a oposição, sua última oportunidade de participação efetiva nessas instâncias e de derrotar Chávez. Como Chávez se defendeu? Com uma política redistributivista de renda de enorme eficácia e impacto social, para a qual a oposição não tinha naquele momento, alternativa ou meios para contra-atacar, e que acabaria assegurando em definitivo a vitória do presidente Chávez no referendo que pretendia revogar seu mandato.

 

Após a greve petroleira de 2003, o governo implementou o programa conhecido como “missiones”, que foram planos sociais emergenciais com impacto positivo entre amplos setores populares e parte dos setores de classe média: 1) o programa de saúde bairro adentro, pelo qual médicos cubanos prestavam consultas diárias e davam plantão nos bairros populares; 2) o programa mercal, que é uma espécie de feira popular, com mais de 20 produtos da cesta básica à preços subsidiados; 3) o programa de distribuição gratuita de alimentação pronta para a população que vive em condições de indigência. A longo prazo, o programa de educação em três níveis, estimulando o reingresso na escola, a alfabetização de mais de 1 milhão e 500 mil pessoas, o reingresso no segundo grau e a criação da Universidade Bolivariana, que propunha incorporar 500 mil estudantes sem vaga no setor público e privado.

 

O petróleo cumpriu um papel de grande importância, pois as estratégias redistributivistas dependiam dos recursos gerados pela exportação do petróleo. Foi criado na PDVSA, o fundo de Desenvolvimentos Econômico e Social para financiar os projetos citados e as obras de infraestrutura no país. A política redistributivista foi um divisor de águas nas relações entre o governo e a oposição, porque seus efeitos paralisaram a oposição e diminuíram seu espaço no Congresso.

 

Na Bolívia os recursos gerados a partir dos hidrocarburetos também desempenham, como na Venezuela, um papel importante para a compreensão dos últimos acontecimentos da sua história política recente. A Bolívia possui uma reserva de 108 bilhões de metros cúbicos de gás natural, sendo a segunda maior reserva de gás da América do Sul depois da Venezuela. Para um país cujo PIB é de 8,4 bilhões de dólares, trata-se de uma importante fonte de dividendos. Na década de noventa, a produção de hidrocarburetos foi o segmento mais dinâmico da sua economia, concentrando em 1994, 32,3% das atividades econômicas da Bolívia. Se houve um crescimento econômico na Bolívia de 3,6% e da renda per capita de 1,3%, em 2004, em parte dele deve-se à recuperação econômica do país, ao aumento do consumo privado e do investimento Público, bem como o ajuste fiscal. Mas, o motivo principal a ser considerado, para essas melhorias, foi o aumento da demanda externa de gás natural e petróleo, paralelo à elevação dos preços internacionais do barril de petróleo. O setor de hidrocarburetos apresentou um crescimento de exportações de 68%, beneficiado pelo aumento da demanda de gás natural boliviano, principalmente do Brasil e pela abertura do mercado argentino, a partir do segundo semestre de 2004.

 

Na década de 90, a Bolívia adotou um modelo de privatização das empresas estatais, visando valorizar o patrimônio das mesmas a partir da associação com capital privado. Na prática, companhias públicas foram entregues aos capitais externos. A empresa YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos), foi distribuída entre os consórcios Enron-Shell, à BP-Amoco e a Repsol-YPF, com a modificação da lei dos hidrocarburetos, fazendo com que as arrecadações dos impostos sobre os recursos naturais diminuíssem de 50%, para 18%.

 

Assim como na Venezuela no governo de Hugo Chávez, na Bolívia a gestão dos recursos de hidrocarburetos tornou-se um tema central para a oposição e os movimentos sociais que levaram Morales ao poder, demandando de sua gestão o retorno do controle dos recursos dos hidrocarburetos para o Estado. A nacionalização do gás boliviano foi, na verdade, o atendimento de determinadas promessas de campanha.

 

Tal como ocorreu na política mexicana nos anos 30, durante a gestão cardenista e em vários outros países da América Latina como o Brasil e a Argentina, o final do século XX foi marcado pela emergência de novos personagens na cena política latino-americana. Segundo Tullo Vigevani:

 

Os últimos anos do século XX e a primeira década do século XXI trazem sinais claros, simbolizam a emergência de populações que anteriormente não tiveram acesso ao Estado, ou tiveram de forma bastante limitada. Como acontece em outros continentes, essa emergência apresenta-se, sobretudo como um grito de resgate da dignidade. Independentes dos seus desdobramentos, a emergência dos novos movimentos sociais na América Latina possui uma tremenda força simbólica. A simbologia vale para figuras política e ideologicamente tão díspares como Lula da Silva, no Brasil, e Alejandro Toledo, no Peru. Se o acesso ao Estado por parte dessas populações se tornará realidade e se consolidará em formas democráticas estáveis, com instituições fortes, é outra questão que apenas o futuro poderá responder.[36]

 

Não podemos afirmar ainda que a crise econômica mundial, iniciada em 2008 e o rebaixamento dos preços internacionais do Petróleo tenham comprometido definitivamente o avanço das conquistas sociais e políticas das classes populares no continente latino-americano. Quando terminávamos a redação desse artigo, dados levantados na imprensa apontam que a situação do governo de Rafael Correa no Equador é semelhante à situação da Bolívia e da Venezuela: “Desde o começo do ano, o governo iniciou uma série de ajustes para conter o impacto da queda do preço internacional de petróleo na economia do Equador. Na última década, o país chegou a crescer 8% ao ano, apoiado na exportação de matérias primas. Com isso, ampliou políticas de assistência social e fez investimentos que permitiram reduzir a pobreza de 45% a 25% desde 2007”. [37]

 

Segundo Tullo Vigevani, somente no futuro próximo (seu artigo foi escrito no ano 2000), poderemos avaliar concretamente as possíveis melhorias nas condições de vida da população de países como o Brasil, Bolívia, Venezuela, Argentina, entre outros, ou se tratam-se de conquistas temporárias. Para ele, pode ser que ocorram vantagens sociais temporárias, devido às circunstâncias econômicas especificamente favoráveis, uma vez que o Estado possa agir aumentando a distribuição de benefícios e de recursos, como saúde, ensino, saúde etc.

 

A experiência da gestão cardenista no México, durante os anos 30, expressa um desafio ainda não resolvido pelos governos comprometidos com o acesso ao poder das camadas populares na América Latina: a efetivação de políticas sociais estáveis e duradouras, tais como o aumento da renda e da produtividade que depende da capacidade do Estado, do crescimento econômico, de políticas industriais e de ciência e tecnologia, combinados com o combate à desigualdade social e a concentração de riqueza.

NOTAS

[1] Todas as referências ao contexto latino-americano do final do século XX e início do XXI e à Bolívia e à Venezuela contemporânea tomaram por base os seguintes autores: VIGEVANI, Tullo. Os Novos paradoxos Latino-Americanos; KRAUSE, Enrique. Os dilemas da democracia no México; HUNEEUS, Carlos. As eleições no Chile: continuidade ou mudança? URQUIDI, Vivian Dávilla e Rafael Duarte Villa. Venezuela e Bolívia: legitimidade, petróleo e neopopulismo. IN: POLÍTICA EXTERNA, Vol. 14, N. 4, Março/Abril/Maio 2006; VILLA, Rafael Duarte. Venezuela: mudanças políticas na era Chávez. In: Revista do Instituto de Estudos Avançados/USP, volume 19, número 55 Setembro/Dezembro 2005; SADER, Emir. Bolívia: a revolução democrático-plebéia. In: MARGEM ESQUERDA, Ensaios marxistas, n. 7, 2006, São Paulo, editorial Boitempo.

[2] BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa, Publicações Europa-América, 4ª. Ed, SD, p. 42.

[3] BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa, Publicações Europa-América, 4ª. Ed, SD, p. 41.

[4] Loraux, Nicole. Elogio do Anacronismo. IN: Tempo e História. Adauto Novaes, Organizador. CIA das Letras\Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1992, p.57.

[5] Loraux, Nicole. Elogio do Anacronismo. IN: Tempo e História. Adauto Novaes, Organizador. CIA das Letras\Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1992, p.57.

[6] Loraux, Nicole. Elogio do Anacronismo. IN: Tempo e História. Adauto Novaes, Organizador. CIA das Letras\Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1992, p.68.

[7] BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa, Publicações Europa-América, 4ª. Ed, SD, p. 42.

[8] BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa, Publicações Europa-América, 4ª. Ed, SD, p. 39.

[9] A Discussão sobre a história política mexicana e as ações do governo Cárdenas fundamentam-se em: CRIPA, Ival de Assis. O Vento das Reformas, Lázaro Cárdenas e a Revolução Mexicana (1934-1940). Paco Editorial,  Jundiaí, S. Paulo, Brasil, 2013.

[10] Debert Grin, Guita. “Ideologia e populismo….”. São Paulo, T. A. Queiroz,  1979, p.13.

[11] Capelato entende essas experiências como formuladoras de uma nova cultura política – política de massas – que se concretizaram em alguns países da América Latina. A crise do liberalismo no início do século, “forjou a busca de soluções alternativas para a questão social, em muitos países, como o Brasil e posteriormente a Argentina, em que a solução foi a configuração de um Estado intervencionista”. Capelato, Maria Helena. Multidões em.Cena: a Propaganda Política no Varguismo e no Peronismo”Campinas, Papirus, 1999, p. 141.

[12] Cárdenas, Lázaro. Discurso del candidato del PNR a la Presidencia de la República, al Pueblo Tabasqueño. Emiliano Zapata, Tabasco, 6/03/34, Palavras e Documentos Públicos, pp. 116-17. (Grifo nosso).

[13] Idem, pp. 128-129. Grifo nosso. Ejido, em espanhol, provém da palavra exitus (saída) e significa “parcela ou unidade territorial estabelecida pela lei, não menor que dez hectares”. Segundo Marco Antônio Villa, é um termo criado após a conquista, denominando as áreas limítrofes dos povoados, que exploravam a pecuária e a lenha, “Após a revolução, passou a designar a parcela de terra entregue pelo governo ao camponês que detêm o usufruto, mas não a propriedade plena. Há ejidos coletivos quando a comunidade explora coletivamente as terras dotadas pelo governo”, Villa, Marco Antônio. “A Revolução Mexicana”. São Paulo, Ática, 1993, pp.75-6.

[14] Sosa, Raquel E., “Los Códigos Ocultos del Cardenismo” . México, Plaza y Valdes editores, 1996, p. 29.

[15] Idem, pp.136-137.

[16] Cárdenas, Lázaro. “Discursos del Candidato del PNR a la Presidencia de la República, en vísperas de las elecciones para renovación de los poderes federales”. Durango, 30/06/34, Palavras e Documentos Publicos p. 132. Grifos nossos.

[17] Dados extraídos de Gilly, Adolfo. “El Cardenismo, Una Utopia Mexicana”. Cal y Arena, México, D. F. , 1994, p. 190.

[18] Artigo 27 da Constituição de 1917, extraído de Córdova, A. , 1973, p. 486.

[19] Cárdenas, Lázaro. “Discurso del candidato del PNR a la Presidencia de la República, al pueblo de Durango, Dgo, 27 de Júnio de 1934. “Plavras  e Documentos Públicos”, p. 129.

[20] Ídem.

[21] Apuntes, p. 359.

[22] Gilly, A. , op. cit, p. 211.

[23] Cárdenas, Lázaro. “Mensaje al pueblo yucateco”.  Mérida, Yuc., 16 de Deciembre de 1939. “Plavras e Doc….”, p. 253.

[24] Cárdenas, Lázaro. Mensaje a la nación del presidente de la República. Torreón, Coah., 30 de noviembre de 1936. “Plavras e Doc….” p. 321.

[25] Cárdenas, Lázaro. Palabras del presidente de la República a Los Senadores para Agradecerles su Solidaridad hacia diversos actos del Gobierno, México D. F. , 8 de Marzo de 1938. “Palavras e Documentos Públicos…..” p. 281 (grifos nossos).

[26] Cárdenas, Lázaro. Palabras del presidente de la República a Los Senadores para Agradecerles su Solidaridad hacia diversos actos del Gobierno, México D. F. , 8 de Marzo de 1938. “Palavras e Documentos Públicos…..” , p. 282.

[27] CERMLC, Fondo Francisco J. Múgica. Citado por Gilly, A. , 1994, p. 223.

[28] Cárdenas, Lázaro. APUNTES, 9 de Marzo de 1938, p. 386.

[29] Ídem, p. 387.

[30] Ídem, 19 de marzo de 1938, p. 391.

[31] Mensaje a la Nación del Presidente de la República con motivo de la Expropiación Petrolera. * México, D. F. 18 de Marzo de 1938, pp. 282-283.

[32] Gilly, A. , op. Cit., p. 101.

[33] Idem, p. 260.

[34] Cárdenas, Lázaro. Versión periodística de la respuesta del presidente de la República a preguntas de corresponsales extranjeros. (Texto publicado en El Nacional.), México,  D. F. 27 de julio de 1938.

[35] Cárdenas, Lázaro. “Respuestas del presidente de la República a Preguntas del Periodista norteamericano H. R. Knickerboker Sobre la Expropiación Petrolera. México, D. F., Enero de 1939. p. 342.

[36] VIGEVANI, Tullo. Os Novos paradoxos Latino-Americanos. IN: POLÍTICA EXTERNA, Vol. 14, N. 4, março/Abril/Maio 2006.

[37] COLOMBO, Sylvia. Equador vive onda de Manifestações que exigem a saída de Rafael Correa. Folha de S. Paulo, 12 de Julho de 2015.

 

Nota de la editora: Este articulo fue actualizado en julio de 2015.

 

Ariadna Tucma Revista Latinoamericana. Nº 9. Marzo 2014 – Febrero 2015. Volumen II

 

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